segunda-feira, dezembro 10, 2007

Impressões sobre Recife

Recife, ao contrário do que muitas vezes ouvimos falar das grandes metrópolis do nordeste brasileiro, é uma cidade urbanisticamente muito bonita e organizada. Em toda a praia de Boa Viagem, principalmente na beira da praia, predominam prédios modernos do tipo arranha-céu, de mais de vinte andares cada, dotados de muito luxo. A arquitetura desses prédios é imponente, é prqticamente um espetáculo à parte da praia propriamente dita. E o imenso número de obras e construções ao longo de todo o bairro dá uma idéia de que a qualidade urbanística do lugar está em crescente expansão.

Além disso, pelo que eu percorri na cidade, nos trajetos aeroporto-Boa Viagem, Recife-Porto de Galinhas, Refice-Olinda e Boa-Viagem-periferia, pude observar que Recife é uma cidade de ruas largas e de poucas favelas. Mesmo contando com bairros humildes na parte da cidade mais próxima do mar, as únicas favelas propriamente ditas que pude ver na cidade estavam localizadas no caminho para Olinda, ao norte do centro, e eram favelas pequenas, tais como as “vilinhas” localizadas dentro de Porto Alegre, como aquelas na avenida Ipiranga e a vila Keddie na Nilo Peçanha. Grandes complexos de pobreza, como a Rocinha carioca, ouo Aglomerado da Serra belorizontino, não vi nenhum. Se existem, estão mais afastadas das praias e do centro da cidade.

O centro histórico de Recife, chamado de “Recife Antigo” é uma jóia histórica, composto por construções centenárias, e muitas delas em bom estado de conservação. Andando pelo bairro com meus amigos, tive a impressão de estar no passado, algo como no Brasil do século passado, ou mesmo em uma cidade de aquitetura lusitana no exterior, como na Índia ou em Angola. Além do antigo, havia uma sensação no lugar de deserto (já que a maioria das casas estava fechada, mesmo que fosse início de noite), com aparência algo que ameaçadora. Gostaria de ter passeado mais por ele, mas vai ficar para uma outra visita no futuro.

O maior problema da cidade, ao meu ver, é a falta de policiamento. Andar à noite pelas ruas, mesmo nos bairros mais finos, como a Boa Viagem, é uma aventura de risco, ainda que se ande em grandes grupos. Os assaltantes andam livremente pelas ruas, não se dão sequer o trabalho de se esconder nas vielas e becos mais escuros, tal como fazem em Porto Alegre, que é uma cidade que já não é famosa pela sua segurança. Além disso, a única viatura policial que eu vi em toda a minha estadia na cidade estava parada em uma avenida de Boa Viagem, rodeada de garotas de programa. Já me falaram que é comum que, nas cidades do Nordeste, os policiais façam ronda noturna à paisana. Porém, pela tranqüilidade dos assaltantes nas ruas em busca de presas, isso não parece ser verdade.

10 comentários:

Anônimo disse...

Impressões do Recife 1.

Depois de cruzar a Ponte Princesa Isabel e dar uns vinte passos à esquerda pela
Rua Aurora, o forasteiro se depara com a estatua franzina e quase feminina do
poeta João Cabral de Melo Neto. Da posição em que se encontra, o ilustre poeta
poderia ver o teatro Arraial, o prédio da polícia civil, o restaurante
Sorbonne, a tapeçaria Mercúrio, uma outra ponte com as pilastras amarelas, o
prédio do INSS à esquerda e mais ao fundo a cúpula de uma antiga prisão hoje
convertida em Casa da Cultura. Deparar-me com sua estátua sentada ali,naquele
sol infernal e à margem do rio Capibaribe ainda com os cheiros ruins que sobem
de suas beiradas quando a maré baixa pareceu-me, se não uma vingança de seus
conterrâneos, pelo menos um karma. Logo ele que tanto esperneou, denunciou e
chamou a atenção dos recifenses sobre os miasmas que emanavam de suas águas,
será que merecia este trágico destino?
Ezio Flavio Bazzo

Anônimo disse...

Impressões do Recife 2.

Aqueles que se detiverem no Empório Bom Jesus para comer um pastel de nata podem
comprar ali mesmo o ingresso para visitação da Primeira Sinagoga das Américas,
que fica a uns vinte passos dali.
Essa rua, nomeada ironicamente de Bom Jesus, que abrigava no século XVIII a
comunidade judaica do Recife era conhecida – pela sociedade formal - como a rua
da “perdição”, e como a rua da “ganhação” –pelas mulheres que troteavam por ela
durante a noite. A inquisição que se instalou em Portugal em 1536, chegou a
Pernambuco em 1593 causando estragos não apenas entre os da comunidade semita.
Mas isso tudo é passado. Os problemas desta “Veneza Pernambucana” agora, são
fundamentalmente os cheiros, os ruídos e as bactérias hospitalares. Há pelo
menos uns seis meses a bactéria interococos faz estragos nas UTIS daqui. E o
mais patético é que – segundo os sanitaristas – se os médicos e os para médicos
tivessem o hábito de lavarem-se as mãos de vez em quando, o problema já estaria resolvido.
Ezio Flavio Bazzo (I-I-2008)

Anônimo disse...

Impressões do Recife 3.

Acusar o Rio Capibaribe de conduzir os esgotos para o mar seria uma leviandade.
Aqui, tudo mundo vê e sabe, é o próprio mar, sedento de porcarias, que vem buscá-las sistematicamente com suas marés. Na alta, invade os canais, entra nas
bocas de lobo, descola o lixo e os dejetos grudados às paredes e a maré baixa faz o resto. Arrasta tudo por debaixo da ponte giratória, lá para o meio das
ondas, para o consumo e deleite dos mariscos e até mesmo de alguns banhistas.
Não sei se a época de Manoel Bandeira já era assim. Teria sido esse o motivo
dele idealizar os mares de Pasárgada, lá na antiga Pérsia? O certo é que sua estátua também está ali na Rua Aurora, sob o horror desses raios de sol. Nas
mãos um exemplar do Jornal do Comércio e nos olhos uma chispa discreta de desolação.
Ezio Flavio Bazzo (II-I-2008)

Anônimo disse...

Impressões do Recife 4.

O Trenzinho do Forró que ia a Caruaru, assim como a Rede Ferroviária do Nordeste
viraram sucata. A Estação Central – que poderia ser ainda tão elegante como Port
Royal virou escombros. Quem quiser ainda pode ver os restos das locomotivas
alemãs, dos guindastes, dos troles e das carroças da antiga Great Western of Brazil Railway amontoados como sombras. Ponte Buarque de Macedo. Café do Poeta.
Restaurante do Leite. Ponte Maurício de Nassau. Trinta e seis assassinatos numa única semana. Casa de Gilberto Freire. Sua devoção por Santo Antonio e seus
sobrados transformados em aranhas-céu. Todo mundo atarefado com sua barriga e com sua fé. Uma estátua do dândi Joaquim Nabuco. Os fornos, o narcisismo e as
ninfetas do Brennand. Os bancos fazendo o teatro do mecenato, a orla confundida com a horda. Apartamentos de 600 metros quadrados onde se oculta a descendência das sinhás e das sinhazinhas que no passado eram levadas por aí ou até o cais
da Lingüeta no alto de suas cadeiras de arruar. A beleza morta do Recife antigo e seus cheiros que, durante a noite, nos fazem sonhar com as Latrinas do Colégio
Marista, texto onde João Cabral escreve: lavar, na teologia marista, é coisa da alma, o corpo é do diabo; a castidade dispensa a higiene do corpo, e de onde ir
defecá-lo.
Ezio Flavio BAZZO (04-01-2008)

Ricardo Agostini Martini disse...

É, mesmo na praia de Boa Viagem, senti o mal cheiro do esgoto e daquele estreito arroio que percorrem o centro de uma grande avenida. Mas preferi não comentar isso no post.

Muito bom texto!
Abraço

Anônimo disse...

O texto que segue foi escrito por Plinio Aguiar, para as orelhas do livro Vagabundo na China, de autoria de Ezio Flavio Bazzo.
..............................

Conheci Ézio Flavio Bazzo, no México, em 1978. Naquela época, nos submetíamos ao curso de mestrado. Estávamos no final de uma fase da aventura de pós-graduação no exterior, uma forma relativamente custosa de afastamento do Brasil, ainda sufocado pela censura e comprimido pelo peso de uma possibilidade, aquela que se adivinha como uma espada permanentemente sobre a cabeça do individuo. A conversa de Bazzo, era o maravilhoso mundo dos ciganos, a decadência do mundo acadêmico, as sacanagens, as viagens constantes às jóias entre coxas das mulheres, fossem mexicanas, irlandesas ou marcianas. O importante eram as viagens. O mundo, o seu mistério. Alguns meses depois Bazzo me disse que havia escrito um livro, o Manifesto aberto à estupidez humana, que não sei em que edição anda hoje. A brochura saiu num castelhano que dependeu muito da boa vontade dos leitores mexicanos, mas relativamente fácil para os brasileiros e seu portunhol local, exceto para aqueles que nem ousaram tocar no livro, provavelmente com receio de macularem sua virtuosa carreira de estudiosos e militantes talmúdicos do materialismo político academicista. Aí Ézio Bazzo foi aos Estados Unidos, comprou um carro velho e rançoso, ajudando a botar o livro na rua. Até sentado nos batentes dos cinemas de arte, vendia a brochura, verdadeiro folhetim de impropérios filosóficos, sabendo de seu trabalho de corrupção da razão todo poderosa, da demoníaca pretensão de dinamitar o discurso armado da classe-média, principalmente de seus intelectuais. Uma verdadeira metralhadora giratória, usando-se uma imagem da moda, mas com uma mira louca, acertando em tudo. O Manifesto era um livro meio inventado de memórias de viagens, real na ética da maldição anti-razão, um vômito de rebeldia, sem pretensões de direitos autorais, onde eram sentida, inclusive de modo direto, a influência de Lautréamont, Marquês de Sade, Bakunin, Hitler, Bataille, Nietzsche, Lênin, o diabo-a-quatro, acertando no que via e no que não via, mas com uma intenção clara, definida. Aí estava o fascínio do estilo folhetinesco, infernal: é preciso que se veja, num mundo burguês, cínico e em desmoronamento, que eu posso fazer esse trabalho letal, onde entram também minhas experiências alucinadas, e vendê-lo, ser lido, engolido, amado, odiado, transado, chupado, fazer mestrado, rodopiar como o diabo na Plaza Juarez, marginalizado, e o mundo continuar no mesmo, enquanto ouço música Zen, fumo cachimbo e peido homericamente. Não creio que alguém possa ter dito: “Gostei do Manifesto”, naquele tom recém-saído do último curso de filosofia e literatura. Impossível. O trabalho do Ezio é uma defesa do kisch, é anti-razão, é um tiroteio descabido onde entram no mesmo saco judeus, cristãos, mulheres, bruxas, marxistas, onanistas, tecnicistas, sacerdotes de todos os tipos, honestos, desonestos, numa retórica do exagero, descalibrada, levando, inclusive, ao riso. Isso: um humor moralizante da anti-moral, que alguns podem chamar anarquista-individualista, visando facilitar a rotulação, decodificar o mistério da subjetividade. Aliás, neste momento, de pós-modernismo em voga, enquadrando-se o trabalho de Bazzo como anarquista, chega-se a Habermas e seu discurso sobre a modernidade, que coloca os anarquistas (pelo menos na literatura e na arte) como, diferentemente dos neo-conservadores, os que realmente se despedem da modernidade no seu todo.
De lá para cá, Ézio Bazzo publicou vários livros, fundou a Revista Víbora, escreveu artigos, inclusive na chamada grande imprensa, sempre no mesmo estilo, a mesma irreverência e coragem pessoal. Mas algo mudou nada permanece o mesmo. Ézio ampliou sua capacidade de fogo usando a fotografia, e ilustrações roubadas sem qualquer escrúpulo de outras publicações, e refinou o destempero verbal, regulando a mira, centrando a sua guerrilha pessoal contra o mundo, preocupando-se definitivamente com o social, os mendigos, as putas, os fodidos da vida, e adotando o maneirismo confessional na sua narrativa. É quando se vislumbra uma possibilidade de se entender o trabalho de Ézio Bazzo, e creio que ele mesmo só há pouco tempo vem entendendo. A morte e a consciência que dela se tem é o verdadeiro problema humano. A partir daí todos os outros problemas horizontalizam-se, tornam-se infinitamente menores, tudo passa a ser titica, a vida uma tortura, até mesmo uma sacanagem divina, e o difícil é entender porque o suicídio não é uma norma geral. A partir desse desespero, e da consciência que se tem desse desespero, Ézio montou o seu discurso propositadamente cheio de citações e referências, num painel em que entram a provisoriedade da vida, a certeza da morte, o relativismo da verdade, a antipatia visceral pelos sectarismos, pelo semitismo, pelo que ele acredita a cosmo visão do judaísmo, relacionada com a cobiça pelo dinheiro e pelo poder, fonte moral dos pecados, raiz de todo o mal, como diz Christopher Brown em sua magnífica leitura de Brueghel. Ézio apela para Cioran, como recurso para continuar. E adota o método de viajar, correr o mundo, munido de uma Canon T90, caderno de notas e o impulso cigano que o levou a conhecer a África, Europa, América, e, agora, a China.
O resultado dessa última viagem é Vagabundo na China. Um livro mais antropológico, uma tentativa bem sucedida de informar confessando, num mundo cada vez mais devassado, desencantado, repleto de caminhos e informações. A ansiedade de entender a alma humana leva Ézio Bazzo, que é doutor em psicologia, terapeuta, chefe de setor de pessoal, cidadão de bom papo, dono de riso constante, usuário incontinente dos adjetivos “fantástico” e “desprezível”, sem vícios, exceto o cachimbo ocasional, a falar dos chineses e da China como quem conta um segredo. E aí está também o segredo de Ézio: a coragem de falar do velho transeunte da velha civilização asiática com a mesma desenvoltura, respeito e irreverência com que fala de Mao, verdadeiro herói contemporâneo. Então, também, vislumbra-se, neste trabalho de maturidade de Ézio Bazzo, um profundo amor pelo ser humano e daí a riqueza de suas imagens, que vem da sensibilidade acentuadíssima do viajante inveterado, e de uma aparentemente contraditória crença no ser humano. Fascinante, pode-se dizer de Vagabundo na China, onde a informação concreta, precisa, mistura-se com momentos como esse: “O suor desse povo tem cheiro de erva. Inspiro-o profundamente tentando identificá-lo, parece de aipo. Não é ruim, também não se parece a uma loção francesa”. Maduro, vivido, sente-se o Ézio poeta: “De tão abobalhado pelas imagens, nem percebo que o ônibus já ficou vazio e que estaciona vagarosamente na parada final. Apenas o motorista, a cobradora e eu. Aproximam-se falando chinês, a cena é fascinante. Respondo ironicamente em português, eles se olham e riem. Todos rimos. A vida é um riso contido ou, então, uma gargalhada em fuga”.
No ano passado, Ézio e eu conversamos muito, saboreando cerveja ou arak, em Brasília, onde estive cursando dois semestres do doutorado em antropologia. Os papos foram importantes para amenizar minha passagem por cidade tão tediosa, porém muito mais decisivo, para, além de reviver uma amizade, descobrir que o franco-atirador Ézio Flavio Bazzo vem transformando, com êxito, seu imenso poder de fogo verbal contra o mundo e suas picuinhas, numa gratificante tentativa de compreender o ser humano e confessá-la. Muchas gracias hombre!
Plínio de Aguiar
Salvador, Bahia, 11 de abril de 1991

Anônimo disse...

A respeito do escritor Ezio F. Bazzo, imprimo aqui a apresentação que Ligia Cademartori fez recentemente ao seu livro "Manifesto aberto à estupidez humana."

"Manifesto aberto à estupidez humana é um livro extremado. Tem a radicalidade da lucidez e da loucura e a contundência daquelas obras que desafiam a expectativa de quem lê com um discurso inesperado e um cenário desconcertante. O uso provocativo da segunda pessoa, no inventário de atos, sentimentos, posições exemplarmente estúpidas, estabelece relação intensa e pessoal entre quem fala e quem lê.
Com grande poder persuasivo, o discurso pode levar o leitor da estupefação à adesão. Convém estar atento a isso. É uma das armadilhas do texto. Se, em suas linhas, você passar a identificar a estupidez de colegas, vizinhos, parentes, amantes, cuidado! Pois desse modo estará negando ao texto sua principal qualidade: o de ser uma superfície refletora. Quando a imagem de tantos conhecidos emergirem dessas páginas, não se iluda e não se prive de participar da aventura de Narciso às avessas que o texto propicia. Este livro fala também de você e da vida que está lhe escapando.
Outra cilada se arma, se tentar descobrir quem fala. Não se trata de um censor nem de um mestre moralista. O livro foi composto por um discurso que a cultura – a despeito das religiões organizadas e das famílias, dos saberes e das autoridades constituídas – não conseguiu sufocar.
Em plena época dos relativismos que tudo legitimam, Ezio Flavio Bazzo expõe um modo insolente e apaixonado de pensar, movido pelo questionamento dos valores.
Evocando fragmentos das obras de Nietzsche, Cioran, Tzara, Malatesta, Marcuse, Marinetti e, também, de Tolstoi, Dostoievski, Ibsen, Thoreau, Cocteau, Cesar Valiejo e Canetti, uma voz, com arrebatamento e firmeza, deboche e emoção, elegância e desleixo, raiva e ternura, faz uma advertência contra as falácias que perseguimos e a intensidade que não conseguimos viver". Ligia Cademartori (Doutora em Teoria Literária)

Anônimo disse...

A respeito do escritor Ezio F. Bazzo, imprimo aqui a apresentação que Ligia Cademartori fez recentemente ao seu livro "Manifesto aberto à estupidez humana."

"Manifesto aberto à estupidez humana é um livro extremado. Tem a radicalidade da lucidez e da loucura e a contundência daquelas obras que desafiam a expectativa de quem lê com um discurso inesperado e um cenário desconcertante. O uso provocativo da segunda pessoa, no inventário de atos, sentimentos, posições exemplarmente estúpidas, estabelece relação intensa e pessoal entre quem fala e quem lê.
Com grande poder persuasivo, o discurso pode levar o leitor da estupefação à adesão. Convém estar atento a isso. É uma das armadilhas do texto. Se, em suas linhas, você passar a identificar a estupidez de colegas, vizinhos, parentes, amantes, cuidado! Pois desse modo estará negando ao texto sua principal qualidade: o de ser uma superfície refletora. Quando a imagem de tantos conhecidos emergirem dessas páginas, não se iluda e não se prive de participar da aventura de Narciso às avessas que o texto propicia. Este livro fala também de você e da vida que está lhe escapando.
Outra cilada se arma, se tentar descobrir quem fala. Não se trata de um censor nem de um mestre moralista. O livro foi composto por um discurso que a cultura – a despeito das religiões organizadas e das famílias, dos saberes e das autoridades constituídas – não conseguiu sufocar.
Em plena época dos relativismos que tudo legitimam, Ezio Flavio Bazzo expõe um modo insolente e apaixonado de pensar, movido pelo questionamento dos valores.
Evocando fragmentos das obras de Nietzsche, Cioran, Tzara, Malatesta, Marcuse, Marinetti e, também, de Tolstoi, Dostoievski, Ibsen, Thoreau, Cocteau, Cesar Valiejo e Canetti, uma voz, com arrebatamento e firmeza, deboche e emoção, elegância e desleixo, raiva e ternura, faz uma advertência contra as falácias que perseguimos e a intensidade que não conseguimos viver". Ligia Cademartori (Doutora em Teoria Literária)

Anônimo disse...

A cortesã que idealizava a transparência da pós-modernidade

Ezio Flavio Bazzo

A pequena valise encostada às pernas era um truque para, se fosse o caso, poder cochilar sem ser roubada. O último ônibus não tardaria. Afastou-se um pouco para que me sentasse a seu lado e, na primeira oportunidade, desatou a falar. Já morei aqui. Desapareci durante cinco anos. Vim no velório de meu pai. O velho foi enterrado hoje e já estou caindo fora. Tenho uma incompatibilidade biológica com essa gente que fala cochichando, que quer saber demais, que passa a vida espiando por detrás das persianas e que acredita realmente ter alguma coisa a ver com o suposto assassinato de Cristo.
Tomei a decisão de zarpar daqui, no dia em que ouvi dois velhos fazendeiros conversando num ônibus que ia de Barbacena para Tiradentes. Um ensinava o outro como envenenar os cachorros de um vizinho. Esse mesmo sujeito referiu-se a uma vaca que não queria amamentar fazendo uma analogia com sua própria esposa. Achei demais. Arrumei a mala e saí daqui para sempre. Essa gente vive só esperando que as piores desgraças do mundo despenquem sobre suas cabeças. Hoje odeio ouvir falar em cidade antiga, barroca ou colonial. Esse palavreado me remete imediatamente à penumbra, à umidade, ao cheiro de excrementos, a um ardor no nariz e à deslealdade. O azul e o branco, o rococó das beiradas, os pregos enferrujados. Por todos os lados de minha infância havia fumaça de incenso litúrgico. Rezas, a espera da morte. Os mesmos telhados, as mulheres frígidas com aqueles mesmos e odiosos corpos de antas. Aquele passo de morte subindo as ladeiras e as escadarias, junto às paredes. A benevolência cristã e espírita. Pela tarde, quando começava a escurecer, todos os sinos badalavam ao mesmo tempo, era como se batessem literalmente dentro de meu cérebro. Aquilo sim que era solidão. A pior solidão é aquela que se experimenta no barulho. As persianas semi-abertas. Os trincos dos janelões com seus ruídos sempre iguais. Meu pavor durante a noite era de ser picada por um daqueles besouros que transmitem a doença de chagas. Diziam que o veneno ou sei lá o que ia diretamente para o coração. Minha casa, de tantos mortos nas mesas e nas paredes parecia um verdadeiro mausoléu. Todas aquelas caras e aqueles olhares macabros me vigiando. Sempre voltados para meus passos, meus sonhos e meus desejos. Aquelas malditas lâmpadas de 40 wats! Fracas, cor sépia, deprimentes. E as pedras. Só os interiores das igrejas me eram mais odiosos que as pedras. A infelicidade humana está diretamente ligada às pedras, as pedras e ao ferro. As dobradiças imensas das portas rangiam. Não havia óleo que resolvesse. O pai bêbado chegando depois da meia noite e aquele ruído macabro. E todo mundo tirando o chapéu, riscando uma cruz no peito e beijando os dedos diante das igrejas, da cruz e do calvário. Quando a noite já havia chegado, todos tinham que fechar as portas, as janelas, as cortinas. Ninguém sabe realmente por que, mas era uma espécie de código desta gente e desta cidade. O pretexto eram os mosquitos. Realmente parece que o cheiro colonial atrai esse minúsculo animal. O cheiro do torresmo e da banha de porco talvez atraiam essa praga para o interior das casas seculares, com seus barrotes e suas vigas infestadas de cupins. Não há fé que de jeito nos cupins. Mas a fé é tudo para esse povo. Dizer colonial e barroco é como dizer fé, submissão, calos nos joelhos, velas. É como revigorar a certeza de ter cravado pelo menos um daqueles pregos que dilaceraram os pés do nazareno. O inferno, a dor, o estigma da maldade, o apocalipse levado às últimas conseqüências no imaginário infantil, principalmente das meninas. O câncer que virá de uma maneira ou de outra, minha filha, - ouvia minha mãe dizendo – é melhor que já nos encontre nos braços da Imaculada Conceição. Demorei a dessacralizar a imagem que tinha de minha mãe, essa pobre mulher que perdeu a vida nesse inferno e que agora, como viúva, terá sua existência piorada: as tetas amarradas, a xota cabeluda e o rabo como se estivesse anestesiado. Já lhe disse que vim ao enterro de meu pai. Quando o vi morto, não senti nada. Absolutamente nada. Da infância lembro apenas suas sobrancelhas enormes e brancas e aquele seu olhar libertino e incestuoso, mas ao mesmo tempo de cão repressor da Opus Dei. Tenho também uma leve lembrança de seu catarro. Escarrava de madrugada numa baixela de estanho. Tinha amigos odiosos. Daqueles que ficavam em pé nos botecos idolatrando uma garrafa de pinga ou de cerveja, ou então de cócoras num posto de gasolina, em silêncio olhando para o nada, como se também vivessem embriagados pela solidão. Odiava com todo meu ser às mulheres que passavam o dia inteiro lavando as calçadas e as paredes, os lençóis e as toalhas. O cheiro de detergente associado à urina dos cães me dá náuseas até hoje. Às nove horas da noite, como já disse, todas as casas estavam religiosamente trancadas. Uma exceção aqui e outra ali, onde se podia ver a claridade de uma maldita lâmpada de 40 wats. Diz-se wats ou volts? Muitas, muitíssimas vezes, acordava lá pelas quatro da manhã com o canto curto e seco de um galo que não havia sido vendido na feira e que enfiava o pescoço pelas grades e fazia sua Ode à melancolia. Passava o resto da noite comovida, numa espécie de cumplicidade com aquela pobre ave tentando compreender a quem dirigia seu derradeiro lamento. Mas hoje não tenho mais nada a ver com isto. Sou cortesã – nome pomposo para dizer puta – longe daqui. Amo a modernidade, a pós-modernidade, o porvir que, tenho certeza, dinamitará todo esse entulho do passado. Amo os prédios e as casas de vidro, transparentes, cheios de luz e de lealdade.
Enquanto o motorista checava sua passagem arrastou-me para um lado e preveniu-me: não creia demasiadamente em minhas palavras. Lembre-se daquilo que a psiquiatra Nise da Silveira dizia: "O homem é mau, mas a mulher é perversa. Mulher sabe ser ruim como o demônio. Uma mulher engana o diabo. Duas enganam o inferno inteiro". E partiu. (São João Del Rei, 23 de outubro de 2008)

Anônimo disse...

Vale a penas ver esse vídeo


http://www.youtube.com/watch?v=SoYLNPnF4uM