No entanto, muito do que tenho lido sobre isso tem me agregado pouca conhecimento. Infelizmente, muitos sociólogos (que são os acadêmicos que mais estudam a pós-modernidade) têm o hábito de escrever de forma obscura, usando e abusando de figuras e formas metafóricas de linguagem, tornando seus textos pouco compreensíveis para quem não tem formação nessa área. Além disso, vários ramos das ciências humanas são impregnados por um relativismo radical, que tira toda e qualquer objetividade do conhecimento, o que torna a leitura de suas obras muito cansativa.
Felizmente, esse não é o caso do livro do Stuart Hall. O autor sabe escrever de maneira bastante clara suas idéias. Segundo o autor, a pós-modernidade, isto é, o período histórico da sociedade, da cultura e da intelectualidade após a Segunda Guerra Mundial, consiste em uma brusca mudança nas identidades sociais tais como elas eram definidas. Ou seja, o autor considera a pós-modernidade como um surto de "crise de identidade" generalizada para o indivíduo humano.
Explicando melhor, o autor diferencia três concepções da identidade individual, de acordo com o período histórico e o ramo do conhecimento implícito. Primeiro, o "sujeito Moderno", ou "sujeito do Iluminismo", visto como um indivíduo unificado e plenamente dotado do senso de razão, decisão, consciência e ação. A racionalidade é vista como o centro essencial da identidade de uma pessoa: todo indivíduo utiliza meios para atingir seus interesses individualmente estabelecidos. Essa concepção de indivíduo está diretamente relacionada à teoria da escolha racional da Ciência Econômica, e à teoria do Direito Natural.
Segundo, o "sujeito sociológico", definido pelas relações de cada indivíduo com o seu meio social, de acordo com a interação com outras pessoas. Isto é, a personalidade de cada sujeito é definida pela interação com a sociedade; cada indivíduo tem uma essência interior, mas esta é continuamente afetada e alterada pelas suas relações com o mundo exterior. Tal visão surgiu no final do século XIX, com o desenvolvimento das ciências sociais, particularmente a sociologia, sobretudo com as obras de autores como Èmile Durkheim.
Terceiro, o "sujeito pós-moderno", visto de acordo com a negação de que as pessoas tenham uma essência individual interior unificada. Isto é, o sujeito tem não uma única, mas sim uma grande variedade de identidades pessoais, e muitas delas podem ser contraditórias umas com as outras, ou mesmo mal resolvidas.
A transformação da concepção moderna-sociológica de sujeito para a concepção pós-moderna, segundo Stuart Hall, decorreu dos avanços nas ciências biológicas e sociais nos séculos XIX e XX que demonstraram a superficialidade da noção do indivíduo unificado definida anteriormente. Na verdade, a própria noção do indivíduo moderno decorreu da evolução intelectual do Ocidente a partir do Renascimento, em contraposição à visão religiosa anterior. Segundo Hall (pg. 26),
Muitos movimentos importantes no pensamento e na cultura ocidentais contribuíram para a emergência dessa nova concepção: a Reforma e o Protestantismo, que libertaram a consciência individual das instituições religiosas da Igreja e a expuseram diretamente aos olhos de Deus; o Humanismo Renascentistam que colocou o Homem (sic) no centro do universo; as revoluções científicas, que conferiram ao Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza; e o Iluminismo, centrado na imagem do Homem racional, cientíico, libertado do dogma e da intolerância, e diante do qual se estendia a totalidade da história humana, para ser compreendida e dominada.
Essa noção de indivíduo foi abalada, a partir do século XIX, tanto pelo desenvolvimento da biologia darwiniana, que encontrou fundamentos naturais para o explicar a racionalidade humana, como pela complexização das sociedades modernas, com o crescimento das atividades comerciais, industriais e a urbanização, o que permitiu o desenvolvimento de novas teorias capazes de explicar a ação e a interação dos indivíduos. Hall aponta cinco avanços da teoria social que contribuíram para a superação da noção do sujeito moderno:
1 - O historicismo marxismo-hegeliano. Nessa concepção, a identidade individual é determinada pelos condicionantes históricos do meio social em que o indivíduo age. Para Hegel, o principal condicionante histórico são as idéias vigentes e aceitas pelos membros da sociedade. Para Marx, o principal condicionante histórico são os meios materiais de produção, isto é, a estrutura econômica vigente.
2 - A psicanálise freudiana. Segundo essa teoria, a formação da identidade individual depende de fatores psíquicos que muitas vezes são inconscientes ao sujeito. Ou seja, a capacidade plena do indivíduo de tomar decisões e agir conscientemente em busca de seus interesses é posta em dúvida.
3 - A linguística estrutural, segundo a qual o pensamento individual é determinado pela cultura do meio social que o cerca, por meio da linguagem. Isto é, cada pessoa só pode se expressar se posicionando a respeito de su cultura, que define a sua língua e a sua capacidade de comunicação com as outras pessoas.
4 - A filosofia do poder disciplinar de Michel Foucault. Segundo esse autor, as instituições sociais têm o papel de vigiar e punir o comportamento individual em benefício não da coletividade, mas sim dos próprios detentores do poder, não apenas do poder político, mas também do poder econômico, ideológico e intelectual. Segundo Hall (pg. 42):
O objetivo do "poder disciplinar" consiste em manter "as vidas, as atividades, o trabalho as infelicidades e os prazeres do indivíduo", assim como sua saúde física e moral, suas práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina, com base no poder dos regimes administrativos, do conhecimento éspecializado dos profissionais e do conhecimento fornecido pelas "disciplinas" das Ciências Sociais. Seu objetivo básico consiste em produzir "um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil".
5 - O surgimento de movimentos sociais das minorias, isto é, que se uniam de acordo com identidades para além daquelas de natureza individual ou de classe social. Hall cita como exemplos o movimentos feminista, estudantil, pacifista e contracultural de 1968. Esses movimentos politizaram a subjetividade e o processo de identificação social, além de escancarar a pluralidade de identidades. Como exemplo, o autor cita o caso de um juiz norte-americano negro e conservador acusado de assediar sexualmente uma estagiária branca, e como que a opinião pública regiu a isso. Os indivíduos tenderam a reagir com base em seus conjuntos de identidades pessoais (do tipo homem/mulher, negro/branco, liberal/conservador), isto é, os homens negros liberais tenderam a ser favoráveis ao juiz, mas não os conservadores, ao passo que os homens brancos, liberais ou conservadores, foram mais favoráveis à estagiária. As mulheres, em geral, foram favoráveis à estagiária, a não ser o caso das mulheres negras liberais, que foram favoráveis ao juiz, acreditando que a denúncia foi alguma espécie de intriga de cunho racista.
No resto do livro, Stuart Hall explica como a pós-modernidade, influenciada pelas cinco correntes de pensamento social descritas anteriormente, abalou a noção de identidade cultural até então mais aceita, que é a identidade nacional, isto é, a cultura de uma sociedade como a cultura de um país. A pós-modernidade, assim como a globalização, desconstriu a noção de que há um senso de nacionalidade acima da individualidade e de localidade. Ou seja, as pessoas estão perdendo seu senso de nacionalismo e de patriotismo, que são vistos como discursos para direcionar o senso de coesão social. Contudo, Hall destaca que a decadência das nacionalidade não significa o fim da coesão social, já que é um discurso relativamente novo na história da humanidade, datando do surgimento dos estados modernos ocidentais, e sua construção não foi um fenômeno pacífico e voluntário, mas decorreu da conquista e imposição por parte dos governos imperiais, que passaram a promover alguns de seus vassalos mais fiéis e próximos à condição de "compatriotas" ao custo da imposição da cultura imperial. Porém, a questão da nacionalidade, apesar de recente, já se enraizou nas sociedades modernas, e têm impacto sobre a cultura vigente nos meios em que vivem os sujeitos, seja na forma da linguagem, seja na forma das instituições, ou ainda na forma da ideologia historicista presente nos meios educacionais.
Com isso, o autor explica a questão do obscurantismo e da perda de identidade intrínsecos à pós-modernidade. Com a globalização, a nacionalidade perde o seu sentido; as pessoas são membros ao mesmo tempo de pequenas comunidades locais e de uma grande aldeia global. Mas a nacionalidade canalizou o senso de cultura, em relação a qual se definem todas as identidades de cada indivíduo, de modo que as pessoas residentes nos países da civilização ocidental sentem que algum sentimento de coesão social tenha se enfraquecido nas últimas décadas. No resto do livro, Hall explica algumas controvérsias a respeito desse impacto da globalização sobre a desconstrução das identidades nacionais, com ênfase na relação da civilização ocidental com as demais culturas humanas.
O melhor do livro, em resumo, é que ele fornece uma boa noção para o público mais leigo sobre os últimos desenvolvimentos nas humanidades sem aquele tradicional "discurso crítico" de forte viés de ideologia política que impregna tantas das obras das ciências sociais.