Lendo o livro do Renato Tapajós, na semana passada, dei-me conta de como que é difícil encontrar trabalhos de intelectuais brasileiros sobre a sociedade nacional em sua atualidade. Como eu relatei no post sobre o livro, vejo que a grande parte dos intelectuais, não só escritores, mas também jornalistas, sociólogos, historiadores, etc, parecem prender-se em suas memórias de sua juventude e ignorar tudo aquilo que aconteceu no país e no mundo nas últimas duas décadas.
Tendo contato com grande parte da produção intelectual de autores brasileiros sobre questões sociais e políticas do país, o que vemos, geralmente, são relatos carregados de saudosismo sobre as virtudes das atitudes dos jovens rebeldes dos anos sessenta e setenta, particularmente a luta contra o autoritarismo militar e a luta por um projeto de desenvolvimento autônomo, nacionalista e distribuidor de renda. Sobre os anos oitenta e o período democrático após 1988, tudo o que lemos são definições baseadas em conceitos controversos como "década perdida", "juventude alienada", "crise da utopia", ou então radicalismos explícitos como "fim da história" ou "morte do desenvolvimento nacional". Contudo, esses estudos, como dito, são carregados de relatos saudosistas, e não estudos analíticos, sobre a trajetória recente da organização sócio-econômica recente do Brasil.
Como motivos para esse posicionamento dos intelectuais nacionais, de fato, cito o sentimento de salvacionismo e de mergulho utópico que caracterizam o pensamento vanguardista dos anos sessenta e setenta. Naquele período, do final da Segunda Guerra Mundial até o segundo choque do petróleo (1979(, o Brasil e o mundo encontravam-se em um período de prosperidade econômica sem precedentes (os "Anos Dourados"), caracterizado pela constituição econômica do "capitalismo regulado", isto é, economia de mercado com intervenção estatal anti-cíclica e estrutural, e um arranjo de cooperação econômica internacional entre os países capitalistas, que inclusive incentivava mecanismos de investimentos produtivos dos países ricos para os subdesenvolvidos (o Acordo de Bretton-Woods). Todo esse clima de prosperidade abriu caminho para uma geração de pensadores voltados para a compreensão dos fenômenos do desenvolvimento social e econômico, e as problemáticas sociais, como a desigualdade e a persistência da pobreza e da miséria. Tais pensadores se preocuparam em formular ousados projetos de desenvolvimento (tanto em nível econômico como em nível social e político) para o país, em que os trabalhadores tomariam as instituições políticas, a economia seria independente das flutuações externas, a renda seria distribuída na sociedade, e a pobreza se extinguiria, pela constituição de um mercado interno no Brasil que poderia perpetuar o crescimento à la Adam Smith. Além disso, a presença de um regime autoritário no Brasil e de restrições à liberdade de expressão tornavam esses debates ainda mais desfiadores para os intelectuais. Na época, todos os vanguardistas (sejam eles desde os comunistas pró-soviéticos até os liberais-democratas) eram contra o regime, e a opressão intelectual servia apenas para alimentar o sentimento de oposição.
Contudo, os acontecimentos dos anos oitenta abalaram profundamente esse quadro. A crise de endividamento do setor público no início da década acabou com o último ciclo de crescimento da economia brasileira, e desde então, o Brasil praticamente estancou o seu crescimento per-capita. Os intelectuais viram que o crescimento econômico, tal como se dava nas décadas anteriores, não era um fenômeno permantente e inevitável. Muitos economistas abandonaram seus projetos de desenvolvimento nacional para se focar em problemas mais técnicos, como o controle da crise externa e o combate à inflação. A crise do comunismo, visível ao longo dessa década, provocou uma queda da utopia sócio-política em nível mundial. Por fim, a redemocratização construída de "cima para baixo", isto é, costurada pelos próprios políticos aliados do regime militar, retirou o caráter sebastianista que caracterizava os pensamentos intelectuais dos períodos anteriores. Agora, com a liberdade de expressão, qualquer um pode expor seus projetos e idéias sem medo de retaliação oficial, os debates tornam-se cada vez mais comuns e repetitivos. As idéias de desenvolvimento parecem que "perdem a graça", pelas repetições contínuas das mesmas idéias das décadas anteriores.
A partir dos anos noventa, o Brasil passa por grandes transformações nas esferas política, econômica e social. Na política, a redemocratização tem levado partidos políticos cada vez mais à esquerda ao controle do governo federal. Contudo, suas ações são cada vez mais semelhantes, como acontece em todo o mundo democrático, e isso, junto com os comportamentos eticamente inaceitáveis de homens públicos de altos postos hierárquicos, tem suscitado uma apatia política da sociedade brasileira crescente. No plano econômico, o endividamento externo elevado e o desenvolvimento tecnológico dos mercados financeiros internacionais praticamente inibiram a possibilidade de o Estado administrar a economia (via políticas fiscais, cambiais, monetárias e intervenção direta) como fazia nas décadas anteriores. Igualmente, tornou-se consenso que o excesso de proteção à indústria nacional havia criado um déficit tecnológico muito sério para as empresas brasileiras. Portanto, os governos sucessivamente têm optado por políticas de abertura econômica, privatizações e controles fiscais e monetários cada vez mais rígidos, acompanhando as tendências da economia mundial. Contudo, as políticas sociais de resdistribuição de renda vêm se tornando cada vez mais abrangentes, fazendo com que a distribuição de renda e a pobreza na realidade brasileira venham melhorando lentamente. Ou seja, no plano social, o Brasil, mesmo que não piorando mais desde o controle da inflação, ainda tem muitos desafios a cumprir. Ao contrário da miséria rural que caracterizava o país nas décadas anteriores, a bomba da vez está na periferia das grandes cidades, cada vez mais caóticas, violentas, sem instituições definidas, sem condições higiênicas de comportar o volume populacional que comportam, e carregadas por massas humanas sem perspectivas de futuro.
Dado esse panorama, é mesmo muito triste que a intelectualidade brasileria ainda se prenda ao passado, à luta contra o autoritarismo, aos devaneios comunistas e ultra-nacionalistas e ao asco à realidade atual mundial. Tal comportamento vem abrindo caminho para as críticas anti-intelectuais (praticamente neo-positivistas) que vemos nos dias atuais, de que o intelectual seria um ente mentalmente inferior ao do técnico (com pérolas do tipo "quem sabe faz, quem não sabe pensa, escreve e ensina"). Isso está errado, pois ainda há muito sobre o que se pensar nesse país. Técnicos e intelectuais podem e devem coabitar a mesma realidade, e resolver os mesmos problemas de modo complementar.
No plano econômico, o processo de abertura externa e a limitação crescente dos instrumentos de política econômica são inevitáveis, mas o fim dos projetos e das idéias de desenvolvimento sócio-econômico de longo prazo não são. A grande questão atual é o crescimento de longo prazo, isto é, a possibilidade de o Brasil recuperar uma trajetória de crescimento compatível com a dos outros países em desenvolvimento no mundo. Para isso, o papel do Estado será fundamental, mas agora fundamentado nos níveis institucional e regulatório, já que os recursos fiscais e tributários disponíveis são cada vez menores. O desafio presente é pensar qual o modelo de desenvolvimento queremos para o Brasil, pensando sobretudo no longo prazo e em uma economia cada vez mais integrada com a comunidade internacional. Fatores e alternativas são abundantes (educação?, integração regional?, reformas institucionais?, quais?, como?).
No plano político, o desafio é recuperar a credibilidade da democracia brasileira frente aos choques institucionais. A apatia política, mesmo presente em todas as democracias consolidadas, não deve se refletir em convivência e aceitação de comportamentos anti-sociais de políticos, de todos os partidos e ideologias. O risco de um novo governo autoritário aparecer e ser apoiado popularmente para "dar ordem na casa" é remoto, mas não é impossível.
No plano social, o foco é a compreensão da estrutura nacional como um país urbano, em que as desigualdades convivem cada vez mais próximas. Ou seja, desaparece o pensamento tradicional cepalino de dualidade entre o centro industrial rico e a periferia agrária pobre. O Brasil de hoje apresenta riqueza e pobreza habitando conjuntamente os mesmos lugares, centro e periferia, campo e cidade. Por fim, a grande mobilidade social que o país vem apresentando nas últimas décadas, possibilitada sobretudo pelo crescimento do setor de serviços na estrutura econômica nacional, faz com que o modo de pensar e de agir dos grupos sociais urbanos nacionais percam boa parte de seu comportamento econômico (isto é, de ricos e pobres, classes sociais), para comportamentos mais individuais, decorrentes de fatores psicológicos ou mesmo de preferências (isto é, o surgimento e a expansão de tribos urbanas).
O livro de Tapajós é um início promissor de toda uma gama de fatores que compreendem a atual realidade brasileira, e são miseravelmente ignoradas pela maioria dos autores.
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