Nesses últimos meses, estou envolvido em um projeto de pesquisa que procura estudar as desigualdades de sexo e de etnia na América Latina mediante a estimação de uma grande quantidade de indicadores. Particularmente, estamos mexendo com dados da Guatemala, país em que indígenas maias e brancos ou mestiços ocidentalizados ("ladinos") convivem como se fossem duas nações distintas, dadas as suas enormes diferenças culturais e sociais.
Contudo, uma questão causou um conflito entre os economistas e os socioólogos do nosso grupo de trabalho. É possível comparar o bem-estar de indígenas e de ocidentais utilizando os mesmos indicadores estatísticos? Em outras palavras, "ser pobre" tem a mesma definição, ou pode ser entendido da mesma maneira, para as duas culturas? Todos os indicadores estatísticos que estimamos são genéricos na economia do bem-estar social e na demografia: a linha de pobreza é calculada com base no custo dos alimentos; altas taxas de fertilidade são associadas ao subdesenvolvimento; tratamento de saúde só é considerado "adequado" se for feito por um médico ou profissional da área; um domicílio só é considerado "de qualidade" se tiver acesso á água potável, sistema de esgotos e coleta de lixo, e por aí vai.
Obviamente, os indígenas, sobretudo aqueles que vivem em regiões rurais da Guatemala, apresentam indicadores muito inferiores aos dos ladinos. Será que alguém espera que uma aldeia isolada tenha acesso a serviços como coleta de lixo? Para os economistas, isso são evidências da situação de penúria desse grupo étnico, a qual deve ser combatida por políticas específicas para cada indicador. Para os sociólogos, no entanto, isso reflete o fato de que os índios têm uma concepção de bem-estar distinta da ocidental. Isto é, entre eles, as mulheres sentem-se felizes quanto têm muitos filhos; logo, altas taxas de fertilidade não estão relacionadas à pobreza. Além disso, eles podem se sentir mais seguros ao receber tratamento do curandeiro da tribo do que de um médico profissional, e ainda podem ignorar a utilidade dos bens e serviços de consumo que estamos acostumados. Isso remete às conhecidas definições e teorias sobre o que é realmente a pobreza.
No meio desse debate, destaco que os sociólogos, em geral, tentam validar seus argumentos levantando evidências empíricas bastante obscuras. Por exemplo, afirmam que antes do contato com o homem branco, os índios latino-americanos eram tão saudáveis que viviam, em média, mais de 100 anos. Além disso, contam que as aldeias indígenas são auto-sustentáveis em termos de condições de sobrevivência, isto é, seus integrantes conseguem produzir exatamente o nível do seu consumo de subsistência, sem escassez nem desperdícios. Doenças e fome só afetam os indígenas após o contato com o homem branco. É claro que essas afirmaçÕes são impossíveis de testar, já que os nativos latino-americanos sem contato com a cultura ocidental nunca sentiram necessidade de desenvolver métodos de mensuração estatística. Eu, por minha vez, prefiro confiar mais nos papers que utilizam dados para testar hipóteses. E esses papers contam que a maior causa de mortes entre crianças indígenas guatemaltecas é a desnutrição de proteínas, e a demanda dessas famílias por serviços de saúde (tema que estou pesquisando nesse exato momento) é bastante racional: elas fazem combinações lineares entre gastos com tratamento tradicional e serviços médicos ocidentais. O tratamento ocidental é tido como o quechamamos de "bem inferior", isto é, é procurado de maneira inversamente proporcional à renda das famílias, é é preferido em casos de moléstias espirituais e emocionais (como a ansiedade, o medo, o pessimismo, etc.), ao passo que o tratamento médico ocidental é preferido no caso de doenças infecciosas.
Na economia, consideramos que, por trás de todas as culturas, existem indivíduos e famílias que têm diferentes gostos, preferências e restrições, mas que contêm uma natureza humana em comum. Ou seja, independente de onde e como vivem, seres humanos têm objetivos e tomam decisões para satisfazer esses objetivos, de acordo com as circunstâncias que enfrentam. Os objetivos são definidos por uma série de preferências individuais, as quais são exógenas nos modelos econômicos, mas que, no mundo real, são determinadas pelas informações que os agentes dispõem em cada momento, e podem ser alteradas de acordo com "processos de aprendizagem".
Tendo essa perspectiva em mente, aliada às contribuiçÕes teóricas de Amartya Sen, a pobreza pode ser entendida como o conjunto de circunstâncias que impede que os indivíduos humanos e suas famílias atinjam seus objetivos tal como gostariam. Assim, esses objetivos variam de pessoa para pessoa e de cultura para cultura, sendo portanto culturalmente relativos. Contudo, a situação de privação contida na ausência de meios para procurar atingir esses objetivos pode ser entendido como um mal absoluto em relação à natureza humana. Como exemplos dessas circunstâncias adversas, podem ser citadas a restrição orçamentária abaixo de um determinado nível de consumo de subsistência, que reflete as restrições materiais à satisfação de necessidades, os indicadores de saúde, que refletem restrições físicas, e os indicadores de educação, que refletem as restrições de informação.
Essas discussões teóricas sempre são úteis para nos fazer refletir sobre a qualidade e a relevância do nosso trabalho.
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Há 2 horas
2 comentários:
gostei muito do "short essay". e achei interessante a referência aos "ladinos". há pouco vim a saber que "ladino" é um dialeto hebraico-espanhol. e sabia que um indivíduo "ladino", no português, é malandro.
DdAB
Duílio, pesquisei na wikipedia a origem do termo "ladino". Vi que as principais referências são em relação ao dialeto hebriaco-espanhol e um outro dialeto no norte da Itália. Além disso, claro, há o adjetivo sinônimo para malandro, esperto.
O termo só parece ser um sinônimo para "mestiço", ou "ocidentalizado", na Guatemala. Será que é um "troco", um termo de origem depreciativa, vindo dos indígenas maias às classes dominantes de seu país?
Abraço
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