quarta-feira, janeiro 31, 2007

Memórias de Sherlock Holmes - Arthur Conan Doyle

"Memórias de Sherlock Holmes", segunda coletânea de contos sobre os casos do detetive Sherlock Holmes, foi publicada em 1894, e seus 11 contos foram periodicamente publicados em jornais britânicos a partir de 1892. Dentre esses contos, destacam-se a primeira aventura do detetive, em que ele busca decifrar um segredo que levou o pai de seu melhor amigo a ser jurado de morte ("A Tragédia do Glória Scott").

Além disso, nessa obra o autor Conan Doyle buscou "assassinar" seu mais célebre personagem, no conto "O Problema Final". Nele, Holmes foge do Professor Moriarty, um líder mafioso genial, que domina o crime organizado na Inglaterra (um "Napoleão do Crime", nas palavras do detetive), e se refugia com seu fiel amigo Dr. Watson na Suíça. Contudo, Moriarty descobre o paradeiro dos dois personagens e formula um plano para matar Holmes, em um momento em que Watson estivesse ausente. No final das contas, Holmes e Moriarty lutam na beira de um precipício, aparentemente caem, e seus corpos nunca mais são vistos.

Na verdade, Conan Doyle procurou eliminar seu personagem Sherlock Holmes para poder dedicar-se a outros ramos literários, como a ficção científica, e desvincular-se da fama de romancista unicamente policial. Porém, a reação do público à morte de Holmes foi tão forte que ocorreu quase que um "boicote branco" às novas publicações do autor, o que levou o mesmo, para não cair no esquecimento e na pobreza, a "ressuscitar" seu personagem no clássico romance "O Cão dos Baskerville", e depois no livro de contos "O Retorno de Sherlock Holmes".

Observação: na última Feira do Livre de Porto Alegre, comprei (saldo de R$2,50) um RPG inspirado em Sherlock Holmes (A Corôa Contra do Dr. Watson) que remete a essa mesma fase das histórias do personagem. Nesse RPG, Sherlock Holmes é dado como morto, mas, na verdade, está disfarçado como um dos personagens do livro, e descobrir a sua identidade é um dos objetivos do jogo.

Sobre as características dos contos e da psicologia de Sherlock Holmes, os contos não trazem novidades. Crimes aparentemente insolúveis acontecem em qualquer lugar na Inglaterra, os personagens lesados por esses crimes procuram o melhor detetive particular do país (Holmes), que viaja até a cena do crime, faz observações e deduções quase que mágicas e, quando necessário, formula planos mirabolantes para encurralar o criminoso oculto. Assim, Holmes soluciona mais um caso de sua carreira, que é relatado pelo Dr. Watson, fica satisfeito com seu ego e retorna ao seu escritório na Baker Street, Londres. Quanto a Sherlock Holmes como indivíduo, sua descrição profunda é realizada na obra "Um Estudo em Vermelho", sendo que nada precisa ser acrescentado a ela. Contudo, a origem do personagem "Sherlock Holmes" obviamente remete ao Auguste Dupin (o nobre francês falido que tem como hobby a solução de mistérios criminosos) de Edgar Alan Poe. Porém, enquanto Dupin é um ser humano normal, com uma cultura literária, cultural e dedutiva acima da média, Holmes remete a quase um "super-homem", acima da humanidade em traços intelectuais, físicos e analíticos, e com grande orgulho de suas aptidões. Em contrapartida, o detetive muitas vezes se revela megalomaníaco, misógeno, misantropo e, por horas, depressivo, o que contrabalanceia a sua superioridade. Além disso, enquanto Poe é um autor considerado de segunda geração romântica pela maior parte da crítica, Conan Doyle é um legítimo pensador vitoriano, e o culto ao progresso científico, presente entre os autores de sua época, é evidente tanto na fundamentação científica dos elementos misteriosos das tramas, como até mesmo no pensamento cientificista e metódico de Sherlock Holmes.

Quanto à diversão de ler os contos em si, eu sinceramente prefiro os romances. Muitas vezes, o enredo acontece tão rapidamente que torna-se difícil a interação do raciocínio do leitor, fundamental na literatura policial, com as deduções de Sherlock Holmes. E, às vezes, a solução da trama torna-se óbvia para o leitor, mesmo que seja fantástica. Porém, mesmo assim, pretendo adquirir os dois livros de contos do personagem que ainda não li ("Case-Book" e "O Retorno").

O link do Wikipédia para maiores informações sobre o personagem é:
http://en.wikipedia.org/wiki/Sherlock_Holmes

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Liberalismo, Coletivismo e Pós-Modernidade

Um dos principais focos das ciências sociais em geral (incluindo a literatura real-naturalista) se trata de explicar as relações possíveis entre o ser humano como indivíduo e o seu meio social, coletivo. Tais relações podem ser vistas nos mais diversos ângulos, de acordo com as diferentes correntes de pensamento dos autores, sendo que alguns procuram focar em questões determinísticas (isto é, como o meio social determina o individual, ou vice-versa), enquanto outros procuram focar sua análise sob um ponto de vista moral, dos possíveis conflitos entre a individualidade e a sociedade, pendendo para o lado que mais estiver de acordo com sua posição ideológica. Contudo, entre os autores mais atuais, a relação entre indivíduo e sociedade não tem mais um tom determinístico; reconhece-se a influência entre ambas as esferas, com ponderações relativas para cada cultura, mas não é possível deter-se num ponto de superioridade de uma delas sobre a outra que valha para a humanidade como um todo, englobando todo o tempo e espaço.

Autores sociais de corrente liberal, muito populares hoje em dia, parecem concordar que o homem é naturalmente livre e racional (para melhor compreensão desses conceitos, o estudo da obra de John Locke é fundamental). Contudo, dada a sua racionalidade, o homem sabe que viver em sociedade é muito mais produtivo do que viver isolado, pela possibilidade da divisão e especialização do trabalho entre os membros dessa sociedade (ver Adam Smith). Contudo, para resolver possíveis conflitos decorrentes da vida em sociedade, os homens como indivíduos racionais naturalmente delegam (pelo que Locke denominou "Contrato Social") seus poderes de julgar e executar normas morais para um ente externo, denominado Estado. O Estado, portanto, teria o papel de criar leis, fazer com que elas sejam cumpridas e punir quem não as cumpre, como modo de minimizar os conflitos individuais decorrentas da vida em sociedade. Qualquer maior poder para o Estado significaria uma invasão da coletividade sobre a individualidade, o que, além de ser anti-natural, segundo essa ideologia (pois a natureza do homem está voltada à liberdade), provocaria uma repressão da sociedade às liberdades individuais, acarretando em uma série de danos para ambas as esferas: para os indivíduos, a repressão da expressão de sua racionalidade, em suma, a busca de sua felicidade; para a sociedade, o bloqueio à criatividade, à meritocracia e ao próprio progresso social, já que todos esses valores estão ligados às iniciativas individuais.

Em resumo, segundo o liberalismo tradicional, bastaria reduzir-se o papel do Estado (a ligação institucional e racional entre o coletivo e o individual) ao mínimo possível para que a pressão social sobre a iniciativa individual - o fenômeno descrito como "coletivismo" - fosse minimizada e os indivíduos seriam totalmente livres para buscar a sua felicidade, desde que não afetassem a felicidade alheia. E indivíduos livres e felizes agiriam livremente buscando o melhor para si, o que, por somatório, levaria a sociedade como um todo a um progresso contínuo.

Contudo, a pós-modernidade atual parece indicar falhas empíricas a essa teoria. Atualmente, as instituições políticas estão em profundo descrédito no mundo inteiro. Grande parte das pessoas considera que políticos burocratas (o Estado Moderno) não passam de corruptos hipócritas (basta observar a evolução do significado do termo "burocrata" desde Max Weber até a atualidade), traduzindo-se em um baixo comprometimento das pessoas com as instituições democráticas, enquanto que a religião tradicional (o Estado Arcaico) é vista como retrógrada e cega, sendo progressivamente pulverizada em pequenas seitas e igrejas com características próprias, agindo muito mais como "bens de consumo espiritual" do que como normas morais. Mesmo o aprofundamento do radicalismo islâmico no Oriente Médio, ou do messianismo político em países da América Latina parecem ser antes a expressão da decadência dos valores do passado do que uma reação à cultura pós-moderna.

Contudo, mesmo com a atual decadência da política (tanto burocrática quanto espiritual), não é empricamente visível que as pessoas, individualmente falando, vem se tornando progressivamente mais autônomas em relação à sociedade. Muito pelo contrário, o que vemos atualmente é a divisão dos membros individuais da sociedade em grupos, denominados pelos autores de "tribos urbanas", cada qual com sua cultura, incluindo código moral e expressão artística, própria. Tal fenômeno é muito mais perceptível entre a população jovem, o que destaca ainda mais a sua novidade. Particularmente no Brasil, a população urbana de baixa renda se identifica com a "Cultura Hip-Hop", com linguajar, vestuário, expressão cultural (a Black Music e o grafite) e comportamento característicos. Dentre a população de mais alta renda parece predominar um movimento "Geração Saúde", valorizando primordialmente o próprio corpo, tanto em saúde como em aparência física, a prática de esportes radicais, o consumismo e a cultura Pop, isto é, a cultura de consumo instantâneo, de modas passageiras. Além dessas correntes predominantes, tanto na população de alta como na de baixa renda aparecem também grupos alternativos, como neo-hippies, rockeiros, metaleiros, punks anarquistas, comunistas, nerds, gays, góticos, clubbers.

Contudo, além da divisão da sociedade em grupos, não há comprovação empírica de que as pessoas de hoje em dia sejam mais felizes do que as de gerações atrás. E menos ainda que as pessoas estejam mais criativas - e consequentemente mais inteligentes - do que seria esperado como conseqüência do enfraquecimento das instituições políticas coletivistas, segundo a ideologia liberal predominante, como pode-se ver pela decadência da educação (principalmente pela falta de entusiasmo dos estudantes com o aprendizado) e pela baixa qualidade da produção cultural atual, cada vez mais massificante. E muito menos, mas muito menos mesmo, vem acontecendo um declínio dos conflitos sociais nos últimos tempos. Pelo contrário, há uma rivalidade entre tribos, principalmente entre as tribos hegemônicas contra as demais, mas também dentro de cada tribo, o que, além de traduzir-se em violência física, provoca uma indesejável pressão social sobre as decisões individuais de busca da felicidade.

Ou seja, as pessoas tendem a se submeter ao seu grupo social de tal modo que a individualidade acaba oprimida pelo seu meio. A ação humana deixa de ser em busca de sua felicidade para ser em busca de reconhecimento pelo grupo. Mesmo sem as grandes instituições políticas tradicionais, a sociedade oprime seus indivíduos de maneiras informais, traduzidas nesse coletivismo de tribo. Suas expressões são a massificação cultural, a mediocratização da intelectualidade e a alienação dos indivíduos em relação a sociedade como um todo, preferindo se isolarem em seus grupos.

Com o texto escrito, o autor não defende, de forma nenhuma, uma volta repressora das instituições tradicionais como forma de quebrar os grupos sociais e integrar todos os indivíduos em um só corpo social, como ocorria anteriormente. Muito pelo contrário, o autor, de ideologia predominantemente democrata, com um viés social em assuntos econômicos, e outro liberal em assuntos sócio-políticos e cético-pluralista em assuntos espirituais, abraça e defende a idéia da busca de felicidade com ideal de vida para cada indivíduo. Por isso, a crítica social presente nesse texto não tem um tom moralista; se as pessoas gostam de ser vazias e medíocres, que sejam, desde que respeitem aqueles que discordam desse modo de agir e pensar. Porém, cabe destacar a insuficiência da ideologia liberal, mainstream das Ciências Sociais atuais, em apontar uma situação de equilíbrio de bem-estar social e individual empiricamente comprovável.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Citação de Émile Zola

Como resposta aos seus críticos:

"Vocês me tratam de escritor democrático e algo socialista e surpreendem-se de que eu pinte certa classe operária com cores verdadeiras e entristecedoras. De início, não aceito as etiquetas que vocês me colam nas costas. Creio ser um escritor sem epíteto; se desejam classificar-me, digam que sou um romancista naturalista, o que não me desgradará. Minhas opiniões políticas não contam... Quanto à pintura de certa classe operária, ela é tal como a expressei, sem sombra, sem uma atenuação. Eu digo o que vejo, verbalizao simplesmente, e deixo aos moralistas a preocupação de tirar lições. Desnudei as chagas do alto, não iria esconder as de baixo. Minha obra não é obra de partido e de propaganda. Ela é obra de verdade."

Germinal - Émile Zola

"Meu papel foi recolocar o homem no seu lugar dentro da criação, como um produto da terra, submetido ainda a todas as influências do meio; e no próprio homem coloquei em seu lugar o cérebro, um órgão entre outros órgãos, porque não creio que o pensamento seja outra coisa além de uma função de matéria." (Émile Zola)

Émile Zola, francês, foi o criador do gênero de romance naturalista, influenciando autores muito importantes da literatura em língua portuguesa, como Eça de Queirós e Aluísio de Azevedo. Vivendo nas décadas finais do século XIX, em que a fé no progresso e o culto à ciência imperavam nos círculos intelectuais em nível praticamente mundial, o estilo de Zola decorre de uma fusão do romance realista de Balzac, Stendhal e Flaubert, baseados na crítica de costumes sociais, com autores da biologia e da medicina, como Darwin e Claude Bernard. Da fusão do realismo com a biologia, Zola criou a escola naturalista, em que a análise social, crítica, do comportamento de seus personagens busca fundamentos no conhecimento científico da biologia de sua época. Assim, as características mais marcantes de sua obra, presentes também nos demais autores naturalistas, são:

1) Em primeiro lugar, a visão do homem como um animal, movido pela eterna satisfação de suas necessidades biológicas e pela adaptação ao seu meio. Repetidas vezes, Zola descreve as ações e o comportamento de seus personagens humanos como próprias de animais, ou então descreve animais como dotados de comportamento quase humano (como o cavalo Batalha, o "filósofo").

2) Em segundo lugar, a ação humana é muito inluenciada por questões patológicas na obra de Zola. O desenvolvimento da vida de seus personagens depende muito das doenças as quais os mesmos estão submetidos. Obviamente, isso decorre da busca de fundamentação científica para descrever o comportamento humano pelo autor. Assim, enquanto os mineradores, por estarem em contato com mais doenças, já são descritos fisicamente e psicologicamente como adultos logo na puberdade, os jovens burgueses mesmo depois dos vinte anos ainda são vistos como crianças.

3) O determinismo pelo meio. Sendo o homem um animal como todos os outros, vive em busca de se adaptar ao seu meio. Portanto, o meio é um fator determinante ao comportamento humano; é mais forte do que qualquer ação individual. No livro, por mais que fosse sofrida a vida dos mineiros de Montsou, eles nunca conseguiam viver sem trabalhar nas minas, ou então ir embora. Eles parecem biologicamente presos a sua condição, passando de geração para geração.

4) O instinto. Apesar de viver em uma época em que as pessoas intelectualizadas tinham plena fé no desenvolvimento científico e na racionalidade humana, Zola põe na irracionalidade, isto é, nos surtos emocionais de seus personagens, um fator de extrema importância no enredo. Por exemplo, a revolta dos mineradores contra seus patrões decorre muito mais do simples ódio de classe do que um movimento racional para elevar os seus salários.

5) O niilismo. O sofrimento e a injustiça são elementos freqüentes no comportamento humano. Mas, para uma sociedade de animais medíocres, irracionais e presos ao seu meio, por mais revoltante que ele seja, como a sociedade humana, melhoras são praticamente impossíveis.

Em termos de enredo, o livro conta a história de Etienne, um trabalhador qualificado com imulsos socialistas, que por ser demitido de seu antigo emprego por brigar com seu ex-patrão, consegue um emprego de minerador em Montsou. Trabalhando com os demais mineradores, muito mais embrutecidos que ele, Etienne acaba se incorporando ao ambiente de pobreza, promiscuidade e ignorância da comunidade de mineradores. Contudo, por sua natureza socialista e intelectual o faz tornar-se um líder carismático de sua comunidade, incitando os trabalhadores contra seus patrões. COntudo, antes de provocar um luta de classes no sentido marxista do termo, o personagem provoca uma revolta dos humanos contra o seu meio natural, que é muito mais forte do que eles.

A corrente de romance naturalista, mesmo que tenha sido fundamental para o desenvolvimento da literatura ocidental no final do século XIX, e tendo influenciado muitas das escolas modernas, tem a sua metodologia de análise do comportamento humano bastante ultrapassada aos olhos da ciência dos dias atuais. Atualmente, os pesquisadores sociais não acreditam mais no determinismo sobre o homem, isto é, fatores ambientais, patológicos e sociais podem influenciar o comportamento humano em uma escala que depende de indivíduo para indivíduo. Mas há um fator de individualidade (presente inclusive no DNA de cada pessoa) que não pode ser descartado sobre o comportamento, que diferencia as pessoas entre si, e que as fazem tomar ações distintas e criativas, podendo dessa forma se desvincular de seu meio social.

terça-feira, janeiro 09, 2007

A Literatura como Ciência Social

Todos nós, cientistas sociais (economistas, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e jurídicos, historiadores, filósofos) empenhamos nossa vida profissional e acadêmica em desenvolver modelos analíticos, muitas vezes mais complexos do que os das ciências naturais, seja em linguagem retórica ou matemática, buscando compreender, ou melhor ainda, prever o comportamento humano, individual e coletivo.

Contudo, muitas vezes nossos modelos (ou mesmo teses, teorias, enfim...) tornam-se o centro de nossas pesquisas; ao invés de buscarmos prever a realidade usando o nosso instrumental, chegamos muitas vezes a realizar exatamente o oposto: usamos a realidade para prever o que aconteceria nos nossos modelos. Tal fator, se por um lado é importante para a melhoria e a evolução no aparato teórico das ciências sociais, tem a má conseqüência de afastar o pensamento dos intelectuais da esfera social, tornando a ciência, em seu conjunto, aparentemente prolixa para o público leigo.

Por outro lado, em todas as ciências sociais, distintas escolas de pensamento parecem concorrer predatoriamente entre si, cada qual gabando-se de possuir supostamente as melhores teorias e o melhor método de abordagem da realidade. Ao menos na economia, mas acredito que isso se espalhe em todas as demais ciências sociais, tal situação faz com que as escolas de pensamento acabem mantendo suas teorias como dogmas, inflexíveis à crítica (mesmo construtiva), à reflexão e ao debate republicano com as demais escolas, buscando principalmente a chegada a sínteses teóricas e concordâncias entre as correntes ideológicas.

Por outro lado, a literatura parece ser mais parcial, no sentido de ser mais subjetiva. Autores literários, pelo menos a partir de meados do século XIX, tendem a escrever levados muito mais por suas paixões individuais do que a dogmadismos acadêmicos. Mesmo que esse viés individual possa ser (e certamente é) um fator de viés irrealista na narrativa, como se pode perceber no aspecto de pesadelo presente na obra de Franz Kafka, por exemplo, é igualmente óbvio que o mesmo fator também apareça em teses acadêmicas em ciências sociais. Por mais frio que um autor seja em sua abordagem teórica e empírica, certamente na sua conclusão o mesmo dissertará sobre o tema que estiver pesquisando com base não apenas na sua observação, mas em aspectos mais profundos de sua individualidade. Porém, ao contrário da literatura, no mundo acadêmico as obras são duplamente viesadas: tanto pela individualidade do autor como pela sua escola de pensamento. Em resumo, na literatura, o viés da abordagem é meramente subjetivo; nas demais ciências sociais, é ao mesmo tempo subjetivo e coletivo.

Mesmo que ao estudarmos a história da literatura nos deparemos com autores sendo catalogados e rotulados como pertencentes a uma ou outra determinada corrente literária, é preciso se lembrar que tais rótulos são definidos por estudiosos, e não exatamente por esses mesmos autores. Por exemplo, José de Alencar nunca definiu a si mesmo como "Eu sou um romântico"; foi com base em elementos de sua obra e em seu período cronológico que estudiosos o catalogaram como "autor romântico".

Assim, não se deve desprezar a literatura como uma importante fonte de dados e observações para as ciências sociais. Uma boa lida em "O Tempo e o Vento" de Érico Veríssimo pode ser uma fonte de conhecimento talvez muito mais rica do que qualquer manual de história do Rio Grande do Sul, em um exemplo óvio. Mas o mesmo vale para a obra de Mark Twain em relação à sociedade do meio-leste norte-americano em meados do século XIX, ou Charles Dickens e Èmile Zola dissertando sobre as conseqüências socias da Revolução Industrial na Europa.

quarta-feira, janeiro 03, 2007

A Parte do Diabo - Michel Maffesoli

Sociólogo da Sourbonne (França), Michel Maffesoli disserta sobre o comportamento humano pós-moderno (contemporâneo), focando nas questões da política e da sociabilidade entre as pessoas. Seu objetivo é encontrar explicações científicas, dentro do universo da sociologia e da filosofia, para alguns dos mais relevantes fatos a respeito do comportamento das pessoas no presente, principalmente, a apatia política, a falta de entusiasmo com a construção de novas correntes intelectuais, o culto ao corpo, a deserção das instituições vigentes. O autor denomina o perfil de comportamento das pessoas no início do século XXI como o de uma "criança eterna", buscando sempre o prazer momentâneo, e demonstrando uma indiferença (manifestando-se como uma revolta branca) pelas instituições, como a democracia representativa (mediante os altos níveis de abstenções nas eleições), o intelectualismo e o culto ao trabalho.

O autor associa essa subverção da sociedade pós-moderna às instituições como não uma crise, mas sim uma mudança da estrutura de valores morais vigentes. Segundo Maffesoli, a tradição moral judaico-cristã construiu, ao longo de toda a sua história, uma visão de mundo em que o Bem e o Mal são valores absolutos e universais, e que o objetivo de todo código moral é desviar a ação individual e coletiva em busca do Bem, e combater o Mal. Assim, todas as grandes correntes de pensamento ocidental (fruto da tradição judaico-cristã), como a filosofia cristã, o Iluminismo e o Marxismo foram sempre focadas em construir o Bem absoluto, isto é, construir uma "sociedade ideal" e um "comportamento individual ideal", e combater toda e qualquer imperfeição relacionada ao comportamento social-individual humana, associada com o Mal. Contudo, para o autor, o Mal, isto é, as imperfeições da humanidade são tão sólidas como o conceito de Bem (o ideal), o que faz com que ambos valores tenham características muito mais relativas do que absolutas (o "relativismo moral", nas palavras do autor). Além disso, muitas das tradições morais fora do universo judaico-cristã (como o paganismo clássico, o animismo africano e o espiritualismo asiático) se preocupam não em combater o Mal, mas sim aceitar que o mesmo faça parte do mundo. Isto é, as imperfeições humanas, em que o autor destaca a mortalidade, devem ser toleradas pelas pessoas para que possamos ter uma visão holística de nossas vidas. Essas imperfeições são, em suma, nosso vínculo com a natureza; na moral judaico-cristã, o Bem é associado ao homem civilizado, racional e criado à forma e semelhança de Deus, o Bem máximo, enquanto que o Mal é associado ao homem animal, selvagem, bárbaro, com paixões e libidos voláteis e momentâneas. Contudo, o autor destaca que o homem é ao mesmo tempo racional e animal, e portanto, tanto o Bem quanto o Mal estão presentes em seu comportamento, e isso é perfeitamente natural.

Contudo, o autor destaca que na sociedade pós-moderna, as pessoas estão ignorando de forma cada vez mais profunda as instituições criadas pela tradição judaico-cristã (fundamentada sobretudo pelo Cristianismo, o Iluminismo e o Marxismo), abstendo-se de participação política, ignorando a cidadania como obrigação, reprovando idealismos intelectuais e moralismos rígidos de qualquer maneira. Pelo contrário, a sociedade parece estar cada vez valorizando mais o momento presente, o prazer em excesso, o movimento de violência, a libido. Isto é, a sociedade ocidental está se voltando para o Mal, isto é, ao contrário do que até agora vinha fazendo. Todavia, o autor argumenta que essa atitude é perfeitamente natural e positiva para a sociabilidade humana ocidental, já que o Mal, isto é, o homem-animal-imperfeito é um conceito universal que nunca será superado.

O autor não destaca uma razão principal para o fato de que a sociedade está em movimento para aceitar o Mal, em vez de combatê-lo. Contudo, mais para o final do livro, o autor parece relacionar isso ao sucesso do movimento feminista. Segundo Maffesoli, as sociedades patriarcais tem um claro espírito belicista e produtivista, e nelas o princípio de "construir um mundo ideal, custe o que custar" tende a se espalhar mais facilmente do que as sociedades matriarcais, com maior espírito de tolerância e compaixão entre as pessoas. Com o processo de independência individual das mulheres ocidentais, os valores morais matriarcais vão tomando cada vez mais importância frente aos patriarcais.

Em termos de estilo litérário, o livro é bastante complexo, não em termos de vocabulário, mas por trabalhar com conceitos relativamente avançados de sociologia e filosofia, o que faz com que leigos nesses assuntos (como eu) não consigam acompanhar todas as passagens do texto. Além disso, é curioso que o autor cite, para dar fundamento as suas teorias, não outros sociólogos, mas poetas e artistas em geral, interpretando sua sensibilidade frente ao mundo e à sociedade.

Por outro lado, o autor parece tratar com excessivo otimismo os valores morais da nova sociedade pós-moderna. A libertação individual feminina, a flexibilidade dos cógigos morais, a tolerância e a compaixão entre as pessoas e a maior proximidade entre o homem e a natureza certamente são avanços à sociabilidade e ao auto-conhecimento da humanidade. Mas outros fatores, tais como a apatia política, o culto ao corpo em detrimento da intelectualidade e o comportamento de "criança eterna", materialista, imediatista e consumista, não estão claros se realmente fazem parte de uma nova relação social no mundo ocidental, ou são sintomas de um processo de mediocratização intelectual e cultural que a nossa sociedade vem passando pelas últimas décadas, e que não tem nada a ver com a tolerância moral e o feminismo.