Em primeiro lugar:
O problema básico da heterodoxia é que todas as premissas e proposições são
colocadas constantemente em discussão, até o ponto que o modelo heurístico de um
economista heterodoxo pode ser parametrizado para obter qualquer coisa.
Nesse ponto cabe destacar que não existe simplesmente "uma escola de pensamento econômico heterodoxo". O que existe é uma linha de pensamento econômico mainstream (com sub-correntes internas), e uma diversidade de linhas alternativas, críticas aos seus postulados, que, no agregado, denomina-se de heterodoxia. O autor minimiza esse fato ao considerar a ortodoxia como um ramo de pensamento econômico pós-ricardiano, e a heterodoxia, uma mera evolução de pensamento pós-malthusiano. Cada linha de pensamento heterodoxo, na verdade, pode ser associado a um programa lakatosiano de pesquisa independente, cada qual com seu núcleo irredutível de hipóteses metafísicas básicas, cinturão protetor de hipóteses auxiliares e heurísticas. Muitos desses programas são sobrepostos e inter-dependentes - entre si e com a ortodoxia - mas não podem ser agregados em um único programa de pesquisa heterodoxo.
Logo após, o autor aponta mais três vantagens da ortodoxia sobre as correntes heterodoxas. Em primeiro lugar, a ortodoxia teria uma vantagem normativa sobre as demais linhas de pensamento, já que a defesa do sistema de preços como orientador da produção e da distribuição teria contido um sistema ético e moral a ele indissolúvel. Os preços seriam um mecanismo de conciliação social, entre indivíduos de interesses distintos. Nesse ponto, tenho pouco a dizer, já que não domino os estudos referentes à ética da economia. Contudo, confesso que essa é a primeira vez que leio que o mercado é moral como defesa para sua manutenção; sempre li que ele é eficiente. Por outro lado, em uma palestra da Deidre Mc Closkey (ortodoxa e conservadora) no encontro da Anpec em Recife, ela deixou claro que haveria mais espaço para a ética cristã na economia neoclássica do que tem atualmente.
Em segundo lugar, a teoria neoclássica faz da economia uma "ciência lúgubre", isto é, comprometida com os problemas econômicos reais (trade-offs), sem espaço para utopias de cunho político. Nesse ponto, eu concordo com o autor, desde que isso não signifique que todos os heterodoxos, de todas as linhas de pensamento, acreditem que os maiores problemas econômicos possam se resumir a falta de boa vontade política. O modelo pós-keynesiano com o qual venho trabalhando, por exemplo, supõe que a inflação é ruim para o crescimento econômico, e que o crescimento pode ser limitado por problemas na balança de pagamentos dos países. Por isso, generalizações, nesse sentido, são perigosas.
Em terceiro lugar, a teoria neoclássica, por manter um aparato teórico coeso (mais uma vez o autor faz referência aos paradigmas kuhnianos), impede um pluralismo irresponsável de soluções de problemas, e se afasta das discussões de cunho político. Nesse ponto, eu concordo em parte com o pensamento do autor. De fato, a teoria neoclássica tenta se afastar de ideologismos políticos. Mas se isso é bom ou é mau, trata-se de um juízo de valor pessoal, passível de discordâncias. Explicarei isso mais tarde.
Por fim, encerrando sua abordagem, o autor aponta o principal motivo que o faz simpatizar pela ortodoxia. Segundo ele, os heterodoxos têm razão ao defender que a economia real é desagregada, na qual a produção decidida ex ante com base nas expectativas sobre a demanda futura. Mas a ortodoxia têm razão ao manter como pressuposto fundamental de sua teoria (um verdadeiro hardcore lakatosiano) um fator que o autor aponta explicitamente como verdade científica absoluta: o individualismo metodológico. Contudo, o individualismo, mesmo sendo uma verdade absoluta, é constantemente ameaçado dentro da própria ortodoxia, quando os economistas trabalham com índices agregados para mensurar o bem-estar social:
Cada vez que um ortodoxo fala em políticas para o crescimento, ele está
adotando o pior da heterodoxia, a incapacidade de perceber que a sociedade não é
um corpo, uma vontade, mas um amontoado de corpos, vontades e desejos tentando
conviver em desarmonia. E essa é a culpa radical da nossa profissão: nós
gostamos de fingir que a teoria normativa gera soluções políticas, e com isso no
lugar de vender soluções para os problemas que as pessoas enfrentam, nós
entramos no mercado de algo no que acreditar: crescimento, emprego,
desenvolvimento.
Esse ponto, que consiste no principal argumento de todo o post do autor, é exatamente o ponto que considero mais crítico. Em primeiro lugar, questiono o que vem a ser, exatamente, uma verdade empírica absoluta em uma ciência social. Na verdade, é passível de discussão a existência de verdades absolutas na própria ciência; nas principais correntes de metodologia científica (Popper, Kuhn e Lakatos), as verdades científicas não são absolutas e infalíveis, mas sim provisórias, constantemente testadas com cada vez mais rigor, falsificadas e substituídas por novas teorias, em um processo evolutivo. Tal processo pode ocorrer com teorias individuais (Popper), paradigmas científicos (Kuhn) ou programas de pesquisa concorrentes (Lakatos), mas a crença de que a ciência pode chegar a verdades empíricas imutáveis procede apenas ao positivismo, do final do século XIX até o início do século XX, ao qual Popper, o principal metodólogo do século passado, foi grande crítico.
Na verdade, a definição de "verdades empíricas" como fontes de hipóteses seguras para a formulação de teorias econômicas remete a John Stuart Mill, estudioso crítico do positivismo, na metade do século XIX. Segundo esse autor, as ciências sociais como um todo teriam o objetivo metodológico de dividir as diferentes motivações que movem o comportamento humano, e estudar cada motivação separadamente. A economia, nesse sentido, teria o objetivo de estudar o comportamento humano lidando com a riqueza (ressalta-se que, na época, ainda não havia definida uma teoria para o consumo). Esse ramo da ciência social poderia basear suas teorias com base em duas premissas consideradas empiricamente verdadeiras pelo autor: as pessoas preferem sempre estar na melhor posição possível de riqueza, e as pessoas, para um nível fixo de riqueza, preferem obtê-la fazendo o menor esforço possível.
Contudo, como já referi em posts anteriores, essa visão metodológica de Mill foi duramente rebatida nas primeiras décadas do século XX por ser demasiadamente racionalista (pela ênfase no deducionimo com base em poucas premissas) e pouco empírica. O debate foi finalizado, para a ortodoxia, com o artigo de Friedman (1952) segundo o qual o que importa são as previsões realizadas pelas teorias econômicas, e não com o seu realismo. Isto é, a ciência econômica é um instrumento de trabalho dos economistas, e não uma coleção de verdades absolutas. Portanto, sob o ponto de vista ortodoxo, a discussão sobre o realismo das teorias de Ricardo e de Malthus, enfatizada pelo autor como cerne da discussão entre ortodoxia e heterodoxia, simplesmente não é relevante para destacar qualquer uma dessas linhas de pensamento. Porém, um dos ramos da heterodoxia ainda mantém a metodologia original de Mill: a escola austríaca, fundamentada naquilo que chama de praxis do comportamento humano.
Ao meu ver, o verdadeiro dissenso entre a ortodoxia e a heterodoxia não é a questão da Lei de Say versus Demanda Efetiva, como defende o autor. Tal ponto pode ser harmonizado, e, de fato, foi conciliado ao longo do século XX pela macroeconomia neokeynesiana, monetarista e novo-keynesiana, pela distinção entre um curto prazo "keynesiano, ou malthusiano", e um longo prazo "clássico, ou ricardiano". Muito mais estrutural do que isso, o que está em discórdia é o próprio individualismo metodológico e a apolitização da ciência econômica, o que o autor destaca como as principais vantagens da ortodoxia!
Explicando melhor, na minha opinião, o que diferencia os economistas ortodoxos dos heterodoxos é que, enquanto que os primeiros acreditam que a ciência econômica pode ser um ramo de conhecimento atemporal, ageográfico, acultural e apolítico, os últimos acreditam que a economia, pelo contrário, não pode se desfazer de seus laços com outras ciências sociais, seja com a história (no sentido de que a economia é socialmente, e não individualmente construída), seja com a política (no sentido de que a economia tem comprimissos políticos, de promoção do bem-estar social, a cumprir). Minha base empírica para essa observação vem dos meus próprios colegas de graduação e de mestrado: enquanto que os mais simpatizantes da ortodoxia dedicam seus estudos à realização de previsões e de métodos empíricos, os mais simpatizantes da heterodoxia preferem estudar relações da economia com a história e a política.
Praticamente todas os ramos da economia heterodoxa pendem para um desses lados - história e política. Marxistas, historicistas (List, explicitamente), institucionalistas, evolucionistas e estruturalistas cepalinos, por um lado, concordam que a economia estudada hoje em dia é um fenômeno socialmente construído e historicamente situado, e não pode ser analisada sem levar em conta esse fato. Por outro lado, outros ramos destacam a importância da economia com objetivos agregados de promoção de bem-estar: pós-keynesianos, estruturalistas, evolucionistas e até mesmo austríacos, com sua ênfase na defesa do liberalismo econômico, visto como nada menos do que um princípio de bem-estar social.
Sobre esses dois pontos, declaro que minha posição pessoal é relativista em ambos. Considero que em parte, a economia tem influências institucionais e históricas; independentemente da propensão natural da humanidade à troca (e se esse fator for relevante), certamente a economia atual difere da economia de 100, 500, 1000, 5000 anos atrás, e isso tem raízes institucionais e da evolução cultural da humanidade. Certamente a economia numa sociedade moderna, baseada numa dinâmica trabalho-produção-troca-consumo não é a mesma de uma numa sociedade bárbara, baseada no roubo e na pilhagem. Além disso, a ciência econômica emergiu em meados do século XVIII não por acaso.
Além disso, mesmo achando importante que as teorias econômicas tentem, pelo menos, evitar tomar ideologias políticas explícitas, de modo procurar tomar conclusões mais robustas sobre suas análises. Mas, por outro lado, o individualismo estrito, está muito longe de ser considerado uma verdade empírica absoluta do comportamento humano. O ser humano é um ser social; é racional os indivíduos viverem próximos uns dos outros, e agir cooperativamente (LUCAS, 1988) quando for vantajoso para todos. Por isso, acho importante o desenvolvimento de teorias econômicas que levem em conta o comportamento de indivíduos agregados em grupos sociais (famílias, profissões, comunidades habitacionais, etc.) para aperfeiçoar as análises.
Um ponto final que quero destacar é o fato de que, independente de relativismos sociais, históricos e políticos que possa afetar a ciência econômica, não acho isso passível da defesa de um niilismo em seu estudo. Isto é, apesar dos problemas enfrentados pelas teorias econômicas, sejam ortodoxas, sejam heterodoxas, e que são intrínsecos à própria noção de conhecimento humano, não acho que isso possa defender que a análise econômica, seja de previsão, seja de explicação, simplesmente não seja possível, de modo que a economia se torne apenas um campo de conflito de interesses ideológicos. Essas críticas, realizadas por diversos autores e estudiosas, destacam mais o desafio de se construir estudos econômicos mais concretos, do que quaisquer impossibilidades.