Ganhei o mais importante livro do intelectual alemão radicado nos Estados Unidos Paul Feyerabend em dezembro passado. Comecei a ler em janeiro deste ano, mas, devido à pressão para eu terminar minha dissertação de mestrado, acabei deixando de lado, e só concluí a leitura nesta última semana. Meu interesse pelo pensamento de Paul Feyerabend vem desde o segundo semestre de 2007, quando eu cursei a disciplina de Metodologia da Economia no meu curso de mestrado na UFMG, e encontrei os conceitos principais do autor no manual do A. F. Chalmers "O Que É Ciência, Afinal?". Imediatamente, as idéias provocadoras e anarquistas do autor me chamaram a atenção, isto é, concordando ou não, elas me fizeram pensar muito a respeito sobre a natureza da ciência, da academia e do conhecimento humano em geral.
As idéias de Feyerabend, conforme organizadas por Chalmers, podem ser agrupadas em quatro pilares estruturais.
Primeiro, o vale-tudo. Segundo Feyerabend, não existe um método científico universal, isto é, cada ramo da ciência e cada paradigma predominante em cada ramo apresenta suas próprias regras. Além disso, essas regras heurísticas para a condução da atividade investigativa existem exatamente para defender os interesses e as posições sociais dos cientistas engajados nos paradigmas vigentes. Por isso, para que um determinado ramo da ciência progrida, é necessário que os pesquisadores rompam com os métodos vigentes e superem o paradigma predominante. Portanto, para o progresso do conhecimento científico, é necessário que os vanguardistas apelem para o vale-tudo para conquistar espaço frente ao conhecimento estabelecido e aos dogmas vigentes. A demarcação entre os pensadores respeitáveis e os charlatões não precisa de regras metodológicas estritas, mas depende dos próprios resultados das pesquisas realizadas, isto é, os pensadores respeitáveis são aqueles com maior capacidade e interesse de trabalhar em suas teorias de modo a superar qualquer limitação que possa apresentar, ou crítica que possa receber. Já os charlatões se acomodam em defender seus pontos de vista em forma original.
Segundo, a incomensurabilidade. Segundo Feyerabend, a observação de dados, fatos e fenômenos está determinada pela base teórica que cada pesquisador tem em mente. Assim, escolas de pensamento distintas para um mesmo ramo da ciência podem ter intepretações totalmente distintas sobre o mundo real, e os métodos empíricos não são capazes de levar a um consenso. Em alguns casos, os princípios fundamentais de diferentes teorias sobre um mesmo objeto são tão distintos que não há sequer a possibilidade de interação entre elas. Como exemplo, o autor cita a relação entre a mecânica clássica e a teoria da relatividade. Por isso, a escolha por parte de um cientista de determinada teoria a ser seguida não depende de nenhum fator objetivo (como a busca do progresso do conhecimento, em Popper), mas sim de suas próprias preferências subjetivas.
Terceiro, a ciência não é necessariamente superior a outras áreas do conhecimento. Segundo Feyerabend, a superioridade do conhecimento científico frente a outras formas de conhecimento, como a espiritualidade, a religiosidade e o conhecimento popular é sempre assumida como pressuposto, mas nunca demonstrada. Para o autor, isso nunca poderá ser demonstrado, uma vez que os cientistas tendem a investigar essas outras formas de conhecimento seguindo seus próprios métodos, que por sua vez estão viesados em favor dos interesses e do modo de pensar e agir dos cientistas. Para uma comparação mais honesta entre todas as formas de conhecimento humano, seria apropriado comparar a natureza, os objetivos e os métodos de cada uma delas.
Quarto, a ênfase na liberdade individual. Feyerabend assume que o objetivo de sua obra, ao refutar a existência de um método científico universal, é encorajar a ação e a criatividade individuais para aprimorar o conhecimento humano. Isso vale não apenas para o conhecimento dito científico, mas abre a possibilidade dos indivíduos terem a liberdade de escolher qual forma de conhecimento seguir. Segundo o autor, a ciência, se não for contestada e não ter a concorrência dessas outras formas de conhecimento, torna-se uma ideologia dogmática que reprime a ação dos indivíduos em nome dos interesses dos cientistas e acadêmicos em geral.
Em relação a minha opinião pessoal sobre as idéias de Feyerabend, tento ser conciliador. Em primeiro lugar, com base em meus estudos e pesquisas em metodologia da ciência, concordo que não há um método científico universal além de definições muito genéricas do tipo "o conhecimento científico deve partir de uma teoria logicamente consistente e passível de comprovação ou refutação com base em testes empíricos". Porém, não estou apto a afirmar se a história do pensamento da humanidade segue a lógica dialética (há um paradigma vigente (tese); ele sofre críticas (antítese); ele pode ser derrubado e substituído por algo proposto pelos seus críticos (síntese)) proposto pelo autor. As revoluções científicas, conforme proposto por Thomas Kuhn, de mudança de paradigmas nos ramos da ciência geralmente seguem essa lógica, mas acho muito importante o progresso linear do conhecimento dentro dos paradigmas, mesmo com suas limitações.
Também concordo com o autor a respeito da dependência que as investigações empíricas têm das proposições teóricas que os pesquisadores seguem. Isso é ainda mais relevante para as ciências sociais, em que muitas das hipóteses levantadas pelas teorias simplesmente não são passíveis de teste, e a conduta de pesquisa tem um caráter mais lakatosiano (de defesa de um "núcleo irredutível" de hipóteses metafísicas). Mas, nem por isso, nego a importância fundamental dos métodos empíricos para o conhecimento humano, apenas defendo que eles devem sempre estar de acordo com um determinado aracabouço teórico, que possa explicar as observações realizadas.
Em relação à escolha por parte dos pesquisadores a respeito de qual corrente teórica seguir, estou mais com Imre Lakatos do que com Feyerabend. O que realmente conta são os interesses futuros, isto é, os pesquisadores estão, em geral, inclinados a se integrar em linhas de pesquisa que possam lhes trazer sucesso profissional, e esses movimentos de pesquisadores em busca do interesse próprio ajudam a explicar a história do pensamento. Os desejos subjetivos metafísicos, conforme proporsto por Feyerabend, têm papel secundário.
Por fim, considero que o debate sobre se a ciência é realmente superior a outras formas do conhecimento vem sendo super-dimensionado. Na verdade, a ciência é realmente superior as demais formas de conhecimento naquilo que propõe fazer, isto é, procurar teorias logicamente consistentes e passíveis de teste empírico. Por outro lado, nem todo o conhecimento humano é passível de ser testado, sobretudo no que diz respeito às ciências sociais, às humanidades e à filosofia (daí meu grande interesse sobre o pensamento de Imre Lakatos, que leva essa consideração em conta). Por isso, nas questões em que a ciência não se propõe a explicar e resolver, tenho muito respeito pelas demais formas do conhecimento, particularmente pela filosofia (no caso de reflexões subjetivas qualitativas não necessariamente empíricas), e pelas artes em geral (no caso da busca de livre expressão, interpretação e criatividade individual, sem necessidade de arranjos lógicos e de empiricidade).
Nesse ponto, considero que Feyerabend, ao tentar polemizar, acabou se excedendo. Ao invés de defender as ciências sociais e a filosofia contra a metafísica de um método científico universal, que são suas áreas de atuação, assim como da maior parte de seus leitores, o autor se prende demasiadamente à defesa de culturas minoritárias (como o vodu, citado pelo autor), da astrologia e da religiosidade, sem levar em conta que tais vertentes tem pouca ou nenhuma correlação com o conhecimento científico, como objetivos e métodos definidos. Nesse ponto, estou de acordo com a crítica de Chalmers. Por último, também achei de mal gosto o autor dedicar um capítulo inteiro da obra procurando defender a Inquisição Católica contra Galileu, mesmo Feyerabend não sendo um conservador.
De qualquer forma, o que interessa é que Feyerabend é provocador e faz com que seus leitores pensem, reflitam, concordem em alguns pontos e explodam de indignação em outros. É exatamente isso que justifica a leitura dessa obra.
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Há 33 minutos
2 comentários:
gente! reflexões muito instigantes. uma vez que a interrupção da leitura foi causada pela dissertação, fiquei a me indagar se a conclusão e redação do texto implica a libertação. epa, já fiz uma espécie de silogismo. ou apenas parti para metáforas? seja como for, queria fazer dois comentários mais sizudos:
.a. claro que liberdade é fundamental, mas a prática da ciência é mesmo escravizadora. entendo que ciência rima com tecnologia, tecnologia rima com aumento de produtividade e isto rima com elevação do bem-estar material humano. as "best practices", o método e tudo o mais é que são aliados. o conhecimento não-científico, como a religião e a própria filosofia, as artes etc. são maravilhosos a partir de certo patamar que permita ao homem desviar seu pensamento da mera sobrevivência.
.b. gosto da idéia da "teoria da unificação da ciência". talvez ela seja algo a ser alcançado apenas daqui a muitos anos (certamente quando o homem dialogar mais proveitosamente com a inteligência artificial). talvez seja apenas uma quimera. mas -se não for quimera- ao vê-la em ação, as gerações futuras abrirão o capítulo da unificação de todas as formas do conhecimento humano.
DdAB
Prof Ricardo,
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