Desde os últimos semestres da minha graduação em economia, principalmente durante os estudos das disciplinas de Economia Brasileira Contemporânea, me despertou uma grande curiosidade em re-estudar a história do Brasil em um nível mais avançado do que o que achava que conhecia desde os tempos do colégio e do cursinho pré-vestibular. Na graduação em economia, aprendemos a estudar os problemas econômicos do Brasil, em toda sua história, sob um enfoque analítico, isto é, como os fenômenos econômicos ocorridos no Brasil (como o processo de substituição de importações e sua crise, a hiperinflação e o Plano Real) podem ser explicados de acordo com a lógica da teoria econômica, sobretudo com a macroeconomia e a economia internacional. Nos principais artigos e capítulos de livros abordados em aula, a análise de dados empíricos como forma de dar suporte a hipóteses levantadas pelos autores, assim como para refutar hipóteses alternativas, é muito valorizada.
Isso contrasta fundamentalmente com o que estudamos de história - e também de geografia política e econômica - no colégio e nos cursinhos pré-vestibular. Nesses casos, os fatos históricos são abordados de acordo com uma lógica marxista-gramsciana. Isto é, toda ação social é determinada pela luta de classes, por antagonismos dualísticos da estrutura sociais, tanto em nível micro como em nível macro, tais como burguesia versus proletariado, senhores feudais versus servos, países centrais versus países periféricos. A ação política seria determinada pelas intenções de interesse econômico, isto é, de fortalecimento ou questionamento das relações de dominação social. Já a ação econômica, que determiaria as ações sociais e políticas, é a infra-estrutura de cada sociedade, suas relações de produção e de distribuição de bens e riquezas. O conjunto de ações políticas, sociais e econômicas integraria um modo de produção, e o objetivo do conhecimento histórico seria exatamente a investigação das características, das contradições e das revoluções dos modos de produção adotados pela humanidade ao longo do tempo.
Nessa abordagem, as verificações empíricas das hipóteses levantadas são deixados de lado. Uma hipótese é dada como verdadeira se segue a lógica teórica apresentada. Se as evidências factuais irem de encontro às hipóteses, pior para essas evidências. Segundo a filosofia gramsciana, que orienta a maior parte do ensino de ciências sociais no Brasil, a busca pela verdade é um aspecto secundário da investigação científica, o foco é a transmissão de uma mensagem para o público. Essa mensagem consiste inveriavelmente em uma vontade de poder por parte do pesquisador, isso é, sua ideologia política e sua intenção de mudar a ordem social vigente. Por isso, essa corrente de ensino vem sendo acusada por intelectuais de outras matrizes metodológicas - e com razão - de instaurar uma situação de doutrinamento político dos alunos durante os estudos de ciências sociais, em favorecimento das idéias esquerdistas.
Por isso, tenho essa curiosidade (e sei que não sou o único) de conhecer o que as evidências empíricas contam sobre a verdadeira - ou pelo menos o que mais se aproxima disso - história do Brasil. E o livro de Leandro Narloch é uma razoável introdução a isso. O livro é muito breve e resumido, e utiliza métodos literários muito mais de cunho jornalístico do que histórico. Isso permite uma melhor fluidez da leitura, sobretudo para o público leigo, mas acaba pecando pela falta de detalhes importantes de certos fatos.
O autor consegue bater em muitos dos mitos que aprendemos sobre a história do Brasil nas escolas. Em primeiro lugar, é demonstrado de acordo com registros históricos de inscrições ao exército colonial português que a maior parte de seus contngentes, sobretudo nas patentes inferiores ao posto de capitão, era composta por indígenas. Inclusive a grande maioria dos bandeirantes, responsáveis pela escravização e morte de muitas tribos indígenas, era composta por outros índios. Além disso, de acordo com a correspondência real portuguesa, a relação entre Portugal e os reinos africanos era muito diferente do que imaginávamos. Ao invés da noção de que os africanos viviam em liberdade, paz e harmonia em seu continente até serem invadidos e escravizados pelos europeus, fica sugerido que a escravidão era praticada pelos reinos mais centralizados da África contra as tribos mais fracas. E, inclusive, o maior poder de barganha no tráfico internacional de escravos era dos reis africanos, responsáveis pela captura, e não dos comerciantes europeus, meros responsáveis pelo transporte até as Américas. Inclusive, Zumbi dos Palmares não era um precursor do socialismo no agreste alagoano, mas sim o fundador de uma sociedade eminentemente feudal e aristocrática, e tinha os seus próprios escravos em seu quilombo. Outro ponto de destaque, também recorrendo a fontes históricas primárias tais como a correspondência entre diplomatas, refere-se à Guerra do Paraguai. Segundo Narloch, a tese de que Brasil e Argentina foram levados à guerra contra o Paraguai para defender os interesses imperialistas britânicos contra a emergência de uma potência industrial nos trópicos é puro mito. O Paraguai de Solano López era um país rural, burocrático, com altíssima concentração de renda e politicamente autoritário, que invadiu seus vizinhos buscando expansão territorial. Ao ser derrotado, a própria figura do ditador Solano López caiu em desgraça frente ao seu povo, e boa parte dos autores revisionistas da década de 1970 foram financiados pelos atuais descendentes familiares do presidente.
Além desses pontos principais, Narloch utiliza outras fontes primárias para verificar que autores muitas vezes identificados como questionadores sociais (ou mesmo esquerdistas), tais como Machado de Assis, Gregório de Matos e Gilberto Freyre, tinham na verdade idologia moralista conservadora. E ainda, a construção de um "cultura nacional" brasileira (expressa em aspectos como o carnaval, a feijoada e o samba) distinta de regionalismos e influências internacionais é pura influência política fascistóide do regime do Estado Novo de Getúlio Vargas (1939-1945). Por fim, alguns heróis da nossa história são desmascarados: Santos Dumont não inventou o avião e muito menos o relógio de pulso (esse, um acessório de origem renascentista). A história de Aleijadinho, ainda que o escultor Antônio Francisco Lisboa tenha mesmo vivido e produzido esculturas em Minas Gerais, foi plagiada do "Corcunda de Notre Dame" de Vitor Hugo por parte de um deputado mineiro que visava a obtenção de um prêmio pela historiografia da cultura regional brasileira por parte do imperador Dom Pedro II. E Lampião, antes de ser um revolucionário socialista no sertão nordestino, era na verdade um mercenário.
Em seus últimos capítulos, o livro aborda as controvérsias envolvendo o Regime Militar brasileiro. Segundo o autor, o golpe militar de 1964 e o endurecimento da ditadura após 1968 foram conseqüência direta das tentativas da esquerda, tanto dos guerrilheiros revolucionários comunistas como de setores varguistas-nacionalistas do então PTB, de tomar o poder pela força. Nesse ponto, o autor acaba fazendo uma defesa muito rasteira desse regime, argumentando, agora sem recursos a fontes empíricas, que a ditadura foi necessária para se manter a ordem institucional no país e salvar o Brasil do comunismo. O conhecimento histórico que eu tenho, vindo de diversos outros estudos e aulas de professores universitários, me diz que, ainda que as ações políticas da esquerda revolucionária eram um significantes no Brasil na década de 1960, esses grupos estavam muito longe de tomar o poder no Brasil, já que eles eram pequenos, ainda que numerosos, descentralizados e na maioria das vezes rivais entre si. Além disso, concordando que o impacto da repressão política direta tenha sido inferior do que regimes similares na Argentina e no Chile, não considero que os vinte anos de regime militar no Brasil tenham sido terminantemente positivos, ou mesmo necessários, para o desenvolvimento social, político e econômico do país. O impacto de suas políticas econômicas foram fundamentais, e isso pode ser demonstrado empiricamente, para a grande concentração de renda no país, a criação de monopólios e oligopólios ineficientes na estrutura econômica brasileira (inclusive nos meios de imprensa "chapa-branca" do regime), e na concentração de atributos fiscais no governo federal, em detrimento dos governos regionais e locais.
Por isso, nesse último ponto, o livro, que se propunha a apontar as evidências empíricas que vão de encontro aos mitos históricos brasileiros, acaba se tornando politicamente viesado à direita, de maneira semelhante à história contada pelos militantes de esquerda (em sentido inverso). Isso restringe a aplicabilidade das suas informações para estudos acadêmicos sobre a história do Brasil, ainda que o autor reconheça que o objetivo fundamental de sua obra é fazer uma mera provocação intelectual. Ou seja, o livro deve ser lido como um "Manual de Curiosidades" sobre a história do Brasil, e não como uma coletânea de novas teses sobre a dinâmica social, política e econômica nacional.
Os livros de 2024
Há 15 horas
4 comentários:
Seu penúltimo parágrafo compromete sua argumentação. Ao desqualificar o autor do livro, o senhor não ofereceu argumentos razoáveis para refutar a afirmação do autor. Se o senhor questiona as fontes do escritor, as suas são igualmente imprestáveis para a validade de suas afirmações.
"O conhecimento histórico que eu tenho, vindo de diversos outros estudos e aulas de professores universitários, me diz que, ainda que o terrorismo de esquerda era..."
Caro Anônimo,
A postagem do blog é uma mera opinião minha, uma impressão pessoal, sobre o livro. Todo o meu blog é de opiniões pessoais, diga-se de passagem. Todo caso, agradeço a crítica.
Abraço
Muito pertinente e brilhante a sua crítica. No que se relaciona aos últimos parágrafos, diferentemente do senhor que aprendeu o período militar nas aulas da faculdade, eu vi. E posso lhe assegurar que foi exatametne como o narrado no livro. O autor ressalta que hoje se sabe que a guerrilha era fraca, mas que na épóca se desconhecia esse fato. Ocorre que não interessa se a guerrilha é fraca ou forte, porque ataca onde quer. E sempre procurando provocar o máximo de destruição possível, como vemos em Israel, Paquistão, Espanha e em quase todas as partes do mundo.
Estava fascinada com a tua escrita. Seria perfeita, irretocável, se explicasse melhor as fontes que te levaram à conclusão, que me pareceu irrefletida e tendenciosa.
De qualquer modo, ver que é jovem e que não tem a mente embotada como a maioria da tua geração que já nasceu com bandeirinha e estrelinha no peito, já é um alento de que não seremos a Venezuela amanhã...
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